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IDEALISMO

As mulheres ideais são feitas da leveza de nuvens distantes da terra. Eu sou pesada porque feita de carne, crises e desejos.

As mulheres ideais estão acima de qualquer dificuldade. Eu subo e desço degraus o tempo todo, mas acabo sempre no patamar da angústia.

As mulheres ideais têm, na aparência, luz e serenidade. Eu tenho pêlos se não depilo, TPM pré e pós a M, bafo quando acordo, preguiça de me vestir e constantes ressacas.

As mulheres ideais representam maturidade e constância. Eu represento um grande conjunto de sensações bipolares, dúvidas, choros incontidos, vontades de ser abraçada e pedidos de ajuda prática aos planos mirabolantes, que não sei como executar.

As mulheres ideais mantêm o controle em qualquer situação. Meu colo e meu ombro são maiores que minha capacidade para dar conselhos.

As mulheres ideais não discutem sua relação amorosa. Eu discuto até minhas relações com as plantas.

As mulheres ideais são auto-confiantes. Eu sou carente, insegura, medrosa e indecisa.

As mulheres ideais têm amor a dar na medida. Eu sou o exagero afetivo em pessoa.

Sem dúvida, é mais tranqüilo conviver com a mulher ideal. Não seria fácil a vida ao meu lado, como não é fácil a comunhão com qualquer pessoa de ossos, músculos, espírito e idéias.

A mulher ideal não tem ideal, é uma idéia.

Nem quero saber se almas gêmeas existem.

O que busco são almas "gemas", pedras valiosas e rústicas, encontradas na escuridão de cavernas, e com paciência e generosidade lapidadas.


ALIENADA




Ali ou aqui é o nada que me alimenta.
Só vejo imagens em espelhos,

temendo o que deles vive atrás.


Quisera ter coragem para sair quebrando reflexos,

e chamando toda a gente para que o mesmo fizesse,

até o mundo passar a ter a cara da própria imagem.


Não sei bem se existe impressão sem referência.
Eu me imprimo uma intenção de sonhar e sorrir,

E me impressiono se encontro feiúra e desavença.


Até quando, meu Deus? Diga apenas...

O que deve fazer o homem para que te veja?


Talvez abrir os olhos e dele tirar facas para defender a vida.
Quem sabe, arrancar as vendas que lhe tapam vistas e feridas?


Não sei, sei de nada.
Aqui ou ali, é sempre o nada.
Nada de gritos, bandeiras e faixas,

Sigo com os punhos cerrados e atravessados no peito.


Nada de viagens, mudanças e abraços desinteressados,

Meu choro e idéias continuam calados.

Nada acontece de errado. Os dias devem correr bem,

E o silêncio é única palavra.


Permaneço parte da nada animadora manada.
E, a nadar, nada a dar, finjo como tudo, Somar-me a uma verdade esvaziada.


ATESTADO


Palavras são trapaceiras.
Pessoas são plurissignificantes.
Tenho medo de pessoas e palavras.

O que escrevo não pára na linha
e seu sentido segue sentido variados.
Eu permaneço observando e percebo,
também não sei ser linear.

Eu e a língua somos signos,
sou signo de câncer e sina consignada ao tempo,
do viver para sonhar como significado.

Letras são venenosas.
Pessoas são a escrita do que passou.
Eu sou poliglota quando bêbada,
e pulo as grotas de qualquer descaminho.

O mundo que age e fala
vive solto num abecedário desordenado.
Meu discurso desce e sobe ao sabor da mudança das minhas regras ontográficas.

Convicções são folhas secas.
Inverno e outono são obras da natureza que fogem ao controle.
Verão acontece se o pé e a fé são quentes...
Sou prima da primavera quando enxergo suas flores.

Redação é relação.
E, às vezes, também redenção.
É reduto de idéias e
redoma de crenças.

Rendo-me à rede que me prende a frases.
E rodo, mal-interpretada, quando vou para outro lugar,
mudando a ordem das orações.

Todo texto é um teste.
Eu vivo dando testadas...

E só me curo da acidez da linguagem,
corroendo o mundo com novas palavras.


ABRAÇO INVISÍVEL

A tarde é linda,
O sol tão quente...
Passear no parque
Fez-me mais sensível!

Sensível não, contente!
Só posso estar doente...
Sensível não faz a rima,
É o que sou, mas não rima...

Prometi não ser triste hoje.
Busquei a natureza para me inspirar.
Mas, inspirei palavras sem lirismo junto com o ar fresco,
como se incertezas fossem parte do calor que me atingia a pele.

A água calma do lago se mostrou antítese do meu espírito.
Vi-me só como uma ave que nadava no centro do espelho,
Mas, distante dela, não tinha sua paz...

De único fator comum, tínhamos a visão do nosso reflexo.
Eu, como ela, mirava-me na água, sem bem ver meu rosto.
Olhar para a própria alma não exige que a luz se reflita...
Exige apenas nossa mais ofuscante reflexão.

Previ que meus escritos, buscados como fonte num deserto de esperança,
Sairiam como cactos contorcidos de confusão e melancolia naquele instante...
E abandonei as idéias em letras e o contato com o humano
Para me sentir melhor acolhida pelo silêncio do abraço sombrio e fresco das árvores.

Baixo aos meus olhos, dentro da água, um cardume aproveitava a tarde como se fosse um só corpo.
Tive inveja de tamanha harmonia.
Resolvi, então, voltar ao diálogo com os homens,
E tomei o rumo de saída para a cidade.

Eis, então, que, na escuridão amena da sombra da última planta vista,
Observei antes da partida um senhor claramente sem nada nem ninguém nesta vida...
Cansado do abraço de tamanduá da cidade, ele parecia buscar afago em troncos e folhas secas.

Tive vontade de chamá-lo para dizer que ele não estava sozinho,
Quando o notei com caneta em punho a anotar muito antes essa minha constatação.

Sem mais tentar rimar os fatos da vida,
nem metaforizar meu sofrimento pra deixá-lo belo...
Termino este texto com duas frases simples e diretas:

Às vezes, sinto como únicas companhias pessoas desconhecidas e seres sem fala...
A solidão pode ser o elo de isolados parceiros perfeitos!


AGRESSÃO GRATUITA

Vendem-se xingamentos ao preço de um carinho.
Há quem não reconheça um sinal de afeto como valor.

Às vezes me sinto agiota de minhas forças para amar o inexistente.
Não se pode gastar amor com quem não se deixa tocar.

Sinto-me frustrada por não conseguir amar.
E sei que para isso não há culpados.

Só tenho culpa pela dor que sinto.
E essa não deve perdurar.

Ou, continuarei a ser vítima das minhas escolhas,
lutando contra meu próprio impulso agressor.

Será que atraio o mal querer por querer?
Ás vezes penso que me atropelo por querer demais.


GAROTA DO TEMPO

Meu inconsciente é o mar,
enquanto o que faço porque sei e quero é feito de areia.

Para cada brecha pelas dunas dada, vem preencher uma porção de água.
E às vezes penso que o vento sopra com a clara intenção de me ver, assim como ele, vulnerável e sem formato.

Será que ele sente que gosto de não pensar sobre o melhor agir?
Saberá ele ver que sou mudança de clima, estação indefinida, falta de parâmetros para minha paisagem?

Sim, a natureza tudo sabe.
Eu é que sou a falta de conhecimento em pessoa.
Não conheço os mistérios da vida, nem as pessoas...

Só o que sei é me desmanchar sob o oceano,
espalhando prévias certezas, esperanças de outrora
e uma consciência, em grãos, dispersa.

Minha mente vive banhada,
e sua força é levada
por um tufão de emoções.


PASSO

Morrer é como cair de um degrau
de até dois centímetros de altura.

Você nem bem se vê, já caiu e não viu.
O carro passou, um olho piscou e a rua sequer notou.

Por que? Se é tão pouca a distância por que tanta importância ao fim?
Enquanto olho pra baixo, no olhar tudo embaço e já não tenho equilíbrio.

Se, ao revés, olho para frente, vejo um céu diferente que não é azul nem tranqüilo.
É só o próximo passo, incerto e sem cadarços para amarrar o destino.

Morrer é como cair de um degrau
de até dois centímetros de altura.

Você nem bem se vê, já caiu e não viu.
O carro passou, um olho piscou e a rua sequer notou.

É só o próximo passo, incerto e sem cadarços para amarrar o destino.
Mas, não é sem cagaço que sinto o vazio de todo o caminho...

Tenho frio na descida,
da imensurável escada da vida.




SOCIEDADE ANÔNIMA S.A.

Um homem sem voz e, ao mesmo tempo, com a cabeça cheia de coisas que ele não sabia de onde vinham nem para onde iriam, caso cogitasse fazer alguma coisa útil com elas. Assim era Pedro naquele momento:

- Maldita idéia essa predominante em tudo de que tudo deve ser usado tendo em vista alguma utilidade! – pensou o rapaz, incomodado por estar em postura nada utilitária. Ao menos, ele agora não era proveitoso ao olhar do mercado para qual trabalhava em regime de escravidão de espíritos. Como analista financeiro do Pregão da Bolsa de Valores de São Paulo, Pedro era, no fundo, um artista frustrado e, em nada, avaliado.

Mas, não se dava conta disso porque a luz do seu espírito vivia abafada entre gritos de desespero de investidores interessados em calcular outra espécie mais usual de valores. – Que merda é essa? Será que agora só sei olhar para cotações, números e moedas e não enxergo meus próprios sentidos?- referiu-se si, enquanto encarava as pessoas que lhe rodeavam sem saber o que dizer.

Todos ali compreenderam imediatamente o íntimo do colega, embora ele nem tivesse conseguido balbuciar qualquer coisa. Era como se fossem igualmente incapazes de se fazer entender porque já não se tocavam. E, caso buscassem o mínimo contato verdadeiro consigo mesmos, como agora faziam, o que encontravam era só o vazio da falta de alternativas para sair do novelo em que havia se transformado sua existência.

Mais um dia sem o vício do trago na ilusão da felicidade pré-programada, é o que buscavam aqueles homens e mulheres reunidos numa sala de escritório pequena e escura. O conjunto ainda não havia se dado um nome como as outras associações de viciados e os famosos grupos de auto-ajuda. Apenas buscavam limpeza, sem saber em que consistia sua sujeira.

- Estou ferrado, muito ferrado. Deus do céu, minha vida acabou e eu não sei o que fazer daqui pra frente. Vocês têm alguma corda para que eu me agarre ou de uma vez me enforque? Digam pra mim. Ainda devo sorrir por alguma coisa, ou a desconstrução de tudo o que até hoje foi parte da minha vida já significa que morri, que já era, que ferrou, ferrou tudo?

O homem que, de tão atordoado pelos próprios medos, interrompera a apresentação de Pedro, era um financista falido, que investira milhões em ações de empresas americanas e perdera tudo diante da crise financeira mundial.

- É mesmo impressionante o estado do nosso colega. Ele demonstra caso típico de abstinência diante da falta dos produtos alucinógenos diariamente por ele consumidos durante anos...- pôs-se a falar com olhar perdido e voz misteriosa uma moça que se dirigia a todos caminhando em meio à roda com vestes vulgares. E ela ainda continuou:

- Eu preferi migrar pra farinha porque isso me esgota menos, sabe? Assim pude começar a curtir as festas, conversar com gente interessante, ouvir bom som, e não continuei a ver minha vida passar de trás do balcão do caixa de banco que eu antes ocupava. Se ainda estivesse naquele lugar, esperando sabe-se lá o que vir de não sei onde, estaria muito mais velha e cansada, e talvez, muito mais viciada na ilusão de ser bem sucedida por ter um emprego de merda para comprar à vista coisinhas bem vistas e quistas no começo de cada mês.

Pedro não pôde conter a empolgação que, de repente, subia-lhe do coração à face, tal qual o sangue que lhe pulsava cada vez mais rápido nas veias fazia com que sua cor alternasse de roxo a vermelho. Ficou excitado. Quis se declarar perdidamente apaixonado à primeira mirada por aquela louca cujas palavras desvairadas agora ouvia.

- A gente nunca teve nada, ouviram? A humanidade quis delimitar um céu de alegrias como quem guarda dólares numa caixa e perdeu o direito ao gozo da própria vida porque a deixou desvalorizar entre cédulas de identidade e dinheiro emboloradas. Não vai sobrar um vintém imaginário pra contar história. Você, meu amigo, fique calmo porque já não tinha o que perdeu.

Chegamos a nos sentir seguros com a possibilidade de investir em títulos de uma felicidade duradoura sem nos dar conta de que jamais existirá lastro para isso - disse Pedro, bem mais à vontade dentre os presentes, voltando-se com especial atenção ao especulador que antes reclamara de suas perdas no mercado financeiro.

- Cara, o mundo se resume mesmo a uma boa carreira. Pode ser profissional, de gente, de correria dos meninos que fogem da polícia...Eu prefiro a minha de pó para, ao menos, sorrir sentindo alguma euforia- falou alto a rapariga louca, como se não se importasse com uma só palavra do que até então ouvira.


MIRADA

Num deserto de idéias sobre mim,
caminhei até todos os porquês evaporarem com meu suor.
Não sei dizer o que do arredor é miragem: eu mesma, o tempo seco, ou o oásis.

Ficaram para trás os passos que trilhei com uma ou outra caravana,

quando resolvi deixar a busca pelo intocável para descansar sob uma solidão de folhas largas.
De repente, vi brilhar no horizonte a luz de uma fonte transbordando novos sentidos.

Então, sem titubear, traguei o calor, embebedei-me de toda a areia e redescobri antigas forças para apertar passos rumo a algo que já vinha fazendo o coração apertado.

Corri com sede em direção a um paraíso que a visão me prometia,
e quanto mais cheguei perto, mais notei que o agora menos distante não era tal qual eu antes o vira...
A esfera de água havia se tornado esfinge, ou assim se fingia.

Quis recuar, mas não pude, tamanha era a provocação daquele enigma escultural.
Continei buscando as cercanias do objeto desejado, com a estranha impressão de que, a cada passo perto de tocá-lo, mais prestes do nada estaria.

As miragens são assim: lindas, instigantes, capazes de conquistar e, ao mesmo tempo, estremecer.
Fosse diferente a luz do cair da tarde, e talvez outra impressão daquela doce imagem criaria.
Mas, agora, fazia frio na vastidão do meu coração arenoso, e eu estava porosa e permeada por ventos de todas as direções e temperaturas.

O que queria de mim aquela miragem a me mirar?
Se eu fosse boa de mira, atiraria no centro do peito daquele tesouro indecifrável uma flecha de amor narcotizante.
Mas, meus sentimentos são bumerangues e levam com seu peso o desejo de voltar...
Talvez assim sejam porque não sabem se desapegar do calor de onde brotaram.

Tanta ardência tem seus riscos!


E se minhas flechas fossem lançadas, mas em nada resvalessem porque o que miro e quero amar é somente quimera?

Não sei dizer a senha para entrar na minha própria esfinge.
E tampouco sei como me livrar de visões que recordam o que nunca avistei.
A indecisão não termina onde acaba meu distanciamento da doce ilusão de óptica por que me apaixonei.

Ela apenas ali começa porque perdura o medo de tocar o esperado,
e continua a presença do receio em conhecer o idealizado.

Tenho sobre a mão, por onde escorre areia, sã e segura somente uma dúvida.

Entre a chance de ter uma ilusão desfeita e o concreto esfacelamento de qualquer fagulha de ilusão,

permaneço estática e me percebo uma combinação de códigos desconexos.


DESENCONTRO

Tive um encontro que para minha companhia deve ter sido programa de índio.
Programa de índio, no sentido que lhe atribui o consenso geral.
Para mim, foi programa de rico, daquelas reuniões em que se pede licença para sorrir e também se sentar.

Sair com um índio deve ser interessante...imagino um cenário de música, fogueira, noite ao ar livre, corpos nus, bebida farta e liberdade...
Mas, sou uma pessoa distante da ingenuidade nativa do homem.

Sou pudibunda (descobri essa palavra ontem, em conversa com colegas de trabalho que riam do som estranho que tem esse símbolo pouco usado para indicar o ser detentor de pureza).
É mesmo uma bunda ser assim pudica e vestida em preconceitos contra mim mesma.

Quisera poder rir e chorar frente a qualquer pessoa que me está próxima.
Mas, parece que é até pecado ser eu, enquanto ainda não bebi alguns goles de qualquer coisa alcóolica.

Minha insegurança só não é maior que meu orgulho. Não dou brecha para o mínimo toque, mas fico brochada se não me tentam tocar.

O próximo encontro romântico terei com Vinícius de Moraes.
É mais fácil e indolor a paixão por alguém preso na eternidade da morte e da arte deixada.

Um amigo me disse que leu Vinícius e se apaixonou pela pomba que, por coincidência, passou naquele instante, em vôo calmo pela janela.

Até agora só percebi próximo à minha sacada o cantar de pneumáticos.
Fecho, então, a janela para não correr o risco de ouvir o mínimo ruído de asas.


SÓ METAFÓRICA

- Cara, hoje eu bem que podia morrer para não ter que viver com essa dor de cabeça...
- Eu também poderia morrer hoje e partiria dessa para outra muito feliz.

Às vezes ajo como se o amanhã não existisse.
Ligo para pessoas com quem há tempos não falava. Tento fazer as pazes com alguns, arranjo confusão com outros. E tudo perde a emoção quando volto a abrir os olhos.

Hoje é daqueles dias que, por querer fazer tudo o que nunca fiz e viver toda a felicidade possível num único segundo, acabo me prendendo a uma eternidade de tédio.
Não sei por onde começar a aproveitar este tempo livre e deixo a tarde passar pensando no bem estar que é estar bem e sem compromissos.

Toco o violão de mais de dez anos desafinado e cheio de pó, e as notas que saem são tristes e desritimadas.
O instrumento ainda não deu liberdade para a canção mais pura, e meu corpo também não se deixou tocar pelas boas sensações que vêm de fora.

Queria que todos os pensamentos e a sensibilidade do mundo coubessem numa única palavra...
- Meta fora essa metáfora! Digo ao espírito escritor solto pelos ares cujos textos às vezes psicografo.

Mas, algumas coisas tanto querem sair, que explodem antes de achar espaço por onde escapar.
Um pouco implodida por dentro, vivo um daqueles dias utilíssimos em toda a sua inutilidade.
A maior representação da contradição humana é uma tarde como essa, vazia e de céu indeciso.

Mato, assim, o tempo
num atual tempo que convida a morrer,
mas não mata porque ainda não pode fechar os olhos em paz.




PÉ DE VIDA

Não plantei uma árvore,
não escrevi um livro,
nem tive um filho.

Escrevi numa árvore,
tive livros,
e plantei a chance de ter filhos.

Esse último plano, enterrei no plano sem o cultivar.
Deixo ao bel prazer do clima tal semente vingar.
A planta que fiz do futuro pode florescer ou secar.

Amazonino quis abraçar um jacarandá para compensar o rio que poluiu,
mas esqueceu-se de perceber que uma floresta toda o abraçava.
Pés de terra deram com a bunda de Severino na falta de chuva.
E Dadá tem na cabeça cabelos e idéias que só lembram as raízes da caatinga.

Quantos braços de rios circundam estes vales!
E ainda há os que se banham em lágrimas sem mais acender velas por temer trovões.

Trago na planta do pé a ligação com minha terra.
Mas, o pé de manga mangou do meu riso e minguou, sumindo no passado.
Então, vi-me e vim só entre palmadas das palmeiras.

Tive uma árvore,
Escrevi um filho,
e plantei um livro...

Não sei se seu fruto quer ser semente ou ser mentira.
Só vejo que idéias são pólem e me escapolem.





AUTOFALANTE

Armando era anarquista e o mais politizado da turma.
Acordou cedo para o trabalho aonde foi de carro e de onde voltou xingando os que como ele dirigiam.

-Seu puto, mal-educado! Não vê que não é culpa minha se esta merda não anda?

E de quem era a culpa, se não era de Armando, nem do homem armado que, atrás, buzinava?
O grande culpado é o agressor que não existe.
Trata-se do monstro que vive escondido entre pilhas de documentos, fichas, registros de nomes e moedas não registradas.

Os que mais o alimentam sequer sabem da sua existência.
Não enxergam sua juba quando entram no ônibus lotado,
nem escutam seu rugido abafado pelo barulho da rotina quando andam maltrapilhos pelas ruas sujas.

Armando sabe bem disso e tem consciência do rastro da fera presente no ranso de ser para ela ração.
Sem mais acreditar na mudança da última palavra da frase anterior de c cedilha para z, nosso anacro anarquista arqueou-se.

Mudou-se para um canto isolado das circunstâncias.
Passou a andar de bicicleta, largou o emprego e hoje vive ajudado por amigos e sustentado pela venda de livros comunistas antigos.

O altivo autista Armando, altruísta em espírito e autoritário em idéias, preferiu criar um espaço elevado e só dentro de outro do qual é inquilino.

Onde estará o fim dessa dívida que temos pelo que pagamos e não usamos?
Onde posso ajuda procurar se, quando eu reclamar tente, quem me atende é parte do que vive a me roubar?
Numa busca cansada por fazer meu grito chegar a algum lugar, sigo atrás de um autofalante quando o som sairia mais alto, de uma caixa torácica com cabos ligados a outras cordas vocais.

Armando já nem se fazia tais perguntas quando morreu agarrado a sua teoria política distante do governo e desgovernada.


PIADA

Joãozinho decidiu escrever qualquer coisa que não tivesse relação com a aula enquanto o professor falava.

Antes achava que só conseguiria soltar sua voz interna quando fora tudo fosse silêncio,

mas a mente é o próprio universo em dimensões e, com todo o seu exagero que ultrapassa o real, também é capaz de caber na mínima fresta imposta pela sorte.

O menino, então, adaptou sua imaginação à falta de ter com que se adaptar. E viu que não precisava de tempo livre, nem inspiração planejada e repensada com critérios metodologicamente implantados pela diretora.

Num papelzinho, desenhou uma criança de ponta cabeça.

Traçou, no vazio, o esboço de um espaço fora da linha que, aos poucos, adquiriu o contorno de dedos.
Focou atenção na ausência, no que estava livre de qualquer sugestão de forma.
Fez primeiro um pé, voltado para o céu, pisando nuvens.
Depois, veio o corpo deformado e caricatural.
O tronco saiu arrotado, nada arrojado, como as coisas que se expressam sem querer.
Enfim, surgiu a cabeça, grande e iluminada pelo vazio de cores, preenchido por todos os espectros de luz contidos no branco da folha.

Era, sem dúvida o desenho mais estranho que alguém já tinha visto.
E Joãozinho teve orgulho da sua apresentação infantil no espaço.
Pela primeira vez, ele sentia um estranho alívio por ter produzido o inesperado.







REVOLTA E RETORNO

Parte I

- Detesto quando me vejo presa e só numa dispensa.
- Prometi a mim mesma que, caso o telefone não tocasse até domingo, estourado estaria o prazo de validade desta minha expectativa com relação aos homens.

- Malvados seres duros e pouco duráveis são eles, que nos deixam esperando sobre prateleiras desertas.
- Por isso, não me sinto culpada quando lanço ao lixo tal material orgânico podre e mal intencionado.

- Trucidados sejam os exemplares de embalagens vazias pela máquina processadora de detritos retornáveis!

- Seria mesmo bom, se um dia eles pudessem retornar com a moral reciclada. Mas, não os deixo em latões fora de casa, com a esperança de ainda revê-los.
- Quando limpo a geladeira em que estou trancada, só persigo a sensação de alívio e segurança da companhia perecível da minha consciência!

Parte II

Eis, então, retornado das profundezas do aterro mais próximo, o homem plástico.
Embora suas formas perfeitas tomem conta do olhar de quem pretende consumi-lo, ele muito se orgulha do próprio conteúdo.

- Não admito ser tratado como um utensílio sem alma.
- Como quer aquela desgraçada ser compreendida se, para isso, seria necessário que ela deixasse de jogar fora tantas formas de sentir já dispensadas?
- Almas e mentes não se descartam.
- Elas tampouco se renovam ao passar por uma máquina construída por mulheres, que remontam seus brinquedos vivos e eretos, de acordo com sua vontade de consumista compulsiva.

- Eu não quero ficar só, nem aceito que, para ter companhia, deva ser recriado.
- Sou pré-dado como produto, adulterado e adúltero, quando meu único erro é querer tudo.

Parte III

- Mamãe, posso levar o cereal que tem o elefantinho marrom na caixa?
- Mas, que droga! Você não pára de encher o carrinho...
- Essa foi a última vez que lhe trouxe ao mercado. Ouviu?

Parte IV

- Dá um trocado pra eu comprar algo de comer, senhora?
-Poxa...ninguém mais ajuda o próximo hoje em dia.

A falta de alimentação não lhe deixava perceber que o problema era justamente o fato de ele estar próximo demais.
Prometesse levar sua miséria para longe e, quem sabe, alguém o atenderia?

Parte V

- Devolve meu sorvete, imbecil!
- Vem pegar se é assim valente...

Valentia não se acha em promoção de cargo,
nem tem o preço abaixado com o excesso de sua oferta.

Vencer a própria data de validade é o tipo de coisa que não traz código de barras.
Mas, são tantos os códigos de barrar as qualidades dos seres nesta nossa economia de idéias,
que alguns corações já se açucararam, enquanto outros se tornaram gelos.
Ambos passaram do prazo de uso e esqueceram para que foram feitos.

Entre marcas de tensão na face e rótulos de ocultar o produto já passado,
os seres são marcados pelo mercado e, assim, sempre estão mercadorias.

Fui deixado com outros numa caixa onde por fora se lê: "Cuidado Frágil".
O alerta é auto-explicativo para que o mundo do consumo saiba o que deve ser isolado.


ANIMALESCA

Trago um elefante sobre as costas,
um gato arranha-me as cordas vocais,
e tenho a falta de homotermia de um sapo...

Toda a fauna que hoje me habita
não dá sinais de partida,
antes, fazem-me, na ída,
com coração galopante
e o descontentamento feroz.

"Somos todos bichos", certa vez ouvi e não vi por onde tal afirmação me incomodava.
Acho que meu auto-conhecimento primata pôs-se em posição de caçada,
já sem ter posição alguma.

Vegetar é sinônimo de ausência de vida porque a grama não raciocina.
Mas, o orvalho sem chuva pode ser da planta o pranto.

Trituro a carne com meus caninos,
rasgo as folhas entre dentes,
e sou selvagem vagem pros grãos duros dos conflitos entalados na minha garganta.

Sou bicho enjaulado nas grades dos meus instintos.

A violência é uma onça acuada,
que açoita a vivência,
e a vivência açoita.

Por que se gosta do gosto de sangue?
Há gosto no gozo,
e agoniza a agonia.

Mas, não morre a infeliz
porque o feliz passa logo,
como bate a asa o beija-flor.

Trancafiei mil canários para que não me fugisse o cantar.
E, na tranca, fiei essa mordaça que envolve a auto-defesa.

Cão de guarda, morro de raiva,
quando deixo entrar em mim essa falta de sentido.


CARTA SEM DESTINO

Cara lembrança,

Não sei até quando fingir que você está no meu passado.
O que precisa ser recordado para continuar vivo em nossa existência, não necessariamente, faz parte do entulho de nossos esquecimentos.

Há coisas que desaparecem com o passar do tempo.
Assim foi com nossos nomes escritos na areia, após o mar invadir dela as reentrâncias que formavam letras.

Outros elementos da vida permanecem para sempre intocados, embora não possam evitar ser atingidos por algumas mudanças.
Nossa antiga fotografia mudou de cor no decorrer das décadas.
Na cena retratada, nossos risos, antes brancos, agora são amarelos.

Mas, a imagem ainda existe em dimensões concretas sobre as mãos e baixo à visão.
Costumo manter tudo o que guardo de épocas mortas não muito longe do alcance.
Nada de baús empoeirados, ou grossos álbuns com fechadura.
Você está entre meus livros preferidos, com o rosto feliz solto entre capas, para que eu possa contemplá-lo a cada vez que for buscar uma nova leitura para histórias já conhecidas.

Nosso romance chegou ao fim há tempos e não cheguei a tempo de compreender o sentido da narrativa. Talvez por isso ainda insisto que os fatos não se esgotaram com o último ponto final.

Sou daquelas lunáticas que fecham um livro e depois abrem a imaginação para tentar adivinhar por onde ainda andariam personagens, cuja pequena parte da vida me fora apresentada.
Nunca entendi o final e, se entendi, é fato que não o aceitei.

Isso não porque eu gostaria que as pessoas presas em histórias contadas seguissem caminho diferente daquele que li. Mas sim, pela estupidez que vejo na idéia de acabar o relato de uma vida antes de ela terminar.

Tudo bem que, para atender a esse capricho meu, jamais existiriam escritores dispostos ao trabalho eterno, nem árvores e folhas de papel suficientes.
Cedo, então, e deixo que as personagens avivadas em frases continuem aprisionadas entre páginas.

No entanto, comigo não posso deixar que isso aconteça. Sou livre inexoravelmente e meu sentimento ultrapassa qualquer limite de caracteres e características.
Não vou enquadrar minhas vivências num ou noutro gênero literário, ainda que isso possa sugerir uma submissão ao gênero sexual oposto.

A intenção não é venerá-lo como eleito autor dos meus próximos passos. Só pretendo preservar comigo afetos que não posso, nem quero, relegar ao canto sujo de uma estante de sebo.

Não sei quem criou a maldita obra que ensina as pessoas a produzirem o passado, fechando-se para paisagens presentes, pela necessidade de auto-defesa, com base em desconfiança.
Faço parte dos leitores descontentes, grupo que odeia enredos pragmáticos, lineares e convencionais.

O bom final deve ser surpreendente, inusitado e impulsivo ao ponto de que eu mesma o possa criar. E poder criativo não me falta...
A ânsia por viver amando, de tão extensa, vale-me da vida a autoria.

É aí que surge um papel branco a minha frente.
Ausência de idéias, vazio de crenças.
Decepção com a própria força apagada à borracha que traz retrocesso.

Será que preciso tanto assim de você?
Como é que posso saber se ainda não me permito lançar qualquer produção que só parta de mim?
Importunada pelo que não importa, prendo-me à importância de importar seus pensamentos para meus contos.

Não sei me ver como leitora.
Personagem rebelde, quero sair da linha e correr por espirais que seguem meus sentidos divididos por capítulos.
Não sei amar, nem busco redenção com a redação das presentes palavras.
Não posso negar que desejo uma resposta, mas, tampouco, faço, para que essa venha, aposta.

Se me amasso e pulo ao cesto, tenho um sexto ao menos de chances de domir tranqüila.
Caso me jogue na sua caixa de correio, volto à primeira página, ao lado do título de uma solidão já esperada.
Sou poeta e não aprendi a amar. Das frases que ouvi, essa melhor me cabe.
Poetas são pessoas nada rimadas, que respiram amor e se alimentam de fantasia.

Quero o mais real sentir,
mas só o que bem faço é sonhar.

Sonho, então, que tu abras minha alma num envelope e eu sele com paz de espírito tantas cartas de baralho para ti já escritas.

Amor não é jogo,
mas não sei não me jogar.
Deixe minhas declarações no fundo de uma gaveta,
enquanto deixo minha mente voar.

Guardo sentimentos, recados e fotos,
só não aprendi a me guardar.


POLIAGONIA
...

O que está por vir são mesmo alguns pontos,
pontos ganhou ou não, pontos de vista e resolução...
Enfim, a reta infinita da incerteza se forma a partir de todas essas pequenas marcas redondas no papel.

Sinto que às vezes nos esquecemos do fato de sermos pontinhos saltitantes pelo mundo, salpicando a realidade, e tentamos ser o tempo todo um reta coesa e bem acabada.
A verdade é que, mesmo quando tenta fugir da geometria, o homem se perde tentando caber em determinadas fórmulas e regras.

De fato, a vida só se desenha dentro de alguns limites.
E o que sempre desejei foi criar uma figura inovadora que me envolvesse e representasse no plano. Acho que ainda não encontrei.

Nunca fui boa em matérias exatas, se é que elas exatamente existem.
Existo inexata.
E não sei calcular bem os impactos que a física do psíquico sobrepõe ao meu querer desregrado.

Amo e não sei amar.
Queria ter algúem ao meu lado em dias frios assim,
mas outro riso não poderia me alegrar...

Estou pulando entre polígonos,
poliagonia que cai como teoria que não pegou com o tempo.
E saiu aliviada da minha cabeça prum racunho qualquer.

Mais uma vez, sou polinômio, álgebra irresolúvel...
Conta que você não iria querer tentar compreender.

Mas, uma vez, sou eu mesma, expressa em pensamentos,
que parecem menos complicados quando chegam a quem seja.


VIAGENTE

Às vezes me dizem que o que tiver de ser será
Mas será que o que eu tiver até lá vai me segurar?
Não me amanso no dia de hoje pacientemente à espera do sim ou do não.
Quero sair quebrando a cabeça por paredes e paradas da mente.

Bem que poderia o tempo ser cavalinho domável,
mas o cavalhete sobre o qual se apóia a beleza dos dias não fica no mesmo lugar.
As imagens somem e reaparecem numa velocidade que faz o passageiro se sentir parado.
Não adianta querer descer do vagão pra ficar mais próximo das coisas belas do mundo,
nem correr atrás da árvore mais linda que se deixou para trás.

A viagem prossegue e persegue caminhos que saem da rota do maquinista.
Maquinações do cérebro, faço-me atravessada pelos trilhos.
Penso num plano para tomar o volante ou ter acesso ao botão de desligar.
Sofro a cada tentativa, cada frustrada ação depreciativa do poder que a vida tem de tudo guiar.

Será que não devo fazer mais perguntas ao vento, para que ele deixe de me castigar?
Cada grão de pó na ampulheta é um suspiro aprisionado e a areia dos anos desfeitos em erosão está dispersa por aí, escapou-me entre dedos e dados.

Escrava transportada ou escrivã do transporte,
ainda não sei, nessa jornada, como melhor me portar.
Só sei que gosto de contemplar a vista de fora, sentadinha no lugar de passageiro,
bem acomodada e segura para tudo ver e comentar.

Mas, percebo que isso não basta e antes nossos dias gasta,
pelo peso do ver apesar do pensar.

Vi agir a estrada e que o
viajar nela entrava.

Sem atalho à sorte, nem placas pra morte...
Sigo viajando sobre cascalhos.


MAU-HUMOR

Há dias em que não sei bem o que é o bem,
Nem sou bem de ninguém,
Sinto-me nascida pro mal versar sobre a vida e as flores...

Dia seguinte, acordo com ressaca e dor das cabeçadas que dei,
Choro pelo que foi, vou pelo que chorei.
E não chego a lugar algum que não o naufrágio da culpa.

Rôo as unhas, fazendo o ruído ridículo de riscos de giz.
Irrito e imito o mito do ódio que um dia provei.
Sou assim, humana na manada,
Emanada do sopro dos grandes deuses das guerras.

Quiçá um dia volte o pajé com seu arco-íris pós-chuvas
E traga de volta a honra como disputa na guerra!

Por que o homem matava pelas matas?
Para defender seu povo e sua terra...
Hoje a terra ainda dá em morte,
Dando transgênico e medicamento forte...

Nas montanhas já não há brilho,
Das selvas, fez-se um buraco...
E o espaço entre arbustos não é maior que entre as pessoas.

Sempre sonhei morrer dormindo, morte tranqüila seria essa.
Para o índio, o sono é vergonha de quem foge à luta...

Hoje sou mais brava que quando era criança.
Antes não existia não e as batalhas só estavam nos livros.
As páginas se amarelaram e o guerreiro foi perdendo a força,
Foi deixando o que tinha de melhor e se despiu da pele vermelha para vestir marcas.

Marcas de arma ou de roupa?
Que importa? São vestes da mesma agressão.
O caminho rumou para o inverso do que era,
e agora sou eu quem se vê morrendo entre flechas...
cada uma delas indicando uma direção.

É como me afasto do alvo a cada passo dado sobre a grama.
Estou de mal com vida
Quando faço mal o que devia...
E não faz bem a violência
Quando bem dirige a crença...

Todo mundo é bem-vindo ao mal!
Espera que o bem vem vindo...

SALVANDO CONFIGURAÇÕES

Clicar em ícones até me tornar um,
quisera ter a vida assim programada.
Pra toda banda que olhasse, ela larga seria,
movimento ágil e fácil em qualquer empreitada.

Faço o download do homem perfeito,
e ele me sente, dedilha o teclado.
Nossa conexão nunca trava nem cai,
e viva o fotoshop, tão útil e amado!

Abri janelas com o meu mouse
para respirar o pouco ar da pequena sala.
Meus passos são bytes por todo caminho,
negocio com seguro, viajo em casa.

Internada, internauta, alimento a ambição
de ter sempre eterna virtuosidade.
Num planeta assim inteiro virtual,
adio o confronto com a realidade.

WWW, ponto e com, só depois vem o BR.
Não confio em ninguém que como eu tanto erre.
A poucos, computador é o riso.
A muitos, com puta dor, abismo...

Quem não estiver on-line, está fora da perfeição.
Só mudou o layout para e mesma forma de exclusão.
E ainda não inventaram um sistema capaz de alterar tanta contradição.

Material cibernético é só mais do mesmo, o homem moderno continua um robô.
Quero um remédio pro vírus do meu winchester, epidemia do acúmulo sem ter onde pôr.

Não se deleta a miséria, nem se reinicia um programa sem fim.
Vou dar logoff disso tudo e dar um enter em mim.


APURAÇÃO

Ultimamente só tenho pensado em versos,
e isso deve fazer com que eu ande cada vez menos compreensível
e mesmo inatingível aos olhos de quem tem a alma cega.

Por outro lado, sinto que estou cada vez mais perto do que sou
quando me protejo assim na sombra dos sentidos figurados...
Porque talvez eu seja pura metáfora da ânsia que trago no espírito,
da vontade de descascar coisas e nomes para chegar ao fim da vida.

Vivo me estranhando com essa tal poesia, de tão parecidas que somos...
Batemos de frente porque ela, assim como eu, tem seus momentos de maior ceticismo, realismo e praticidade.
Só que nossos estados de ânimo não coincidem: ela quer escorrer pelas páginas em branco, e eu quero que uma cerveja gelada me escorra pela garganta.

Se eu resolvo pegar o lápis, a pentelha toma as idéias pelas mãos e toca com elas a fugir...

Porém, como os namorados que fazem amor com maior entrega após uma boa briga, no meu encontro com a tal poesia, quando ele finalmente acontece entre ídas e vindas, sinto um orgasmo mental descomunal...
Essas palavras que ninguém entende são minha terapia, meu sexo, minha birita, meu baseado em fatos reais...

Depois desse trocadilho infame, virá você que me lê perguntar: mas, o que você quis dizer com a primeira estrofe?
Pois saiba que todo poema só não é maior mistério para o leitor que para quem o escreveu...
Costumo dizer que não escrevo, psicografo e ponho em grafia o que diz minha psique.

Não sei se a boa poesia deve ser sensível ou esperta, só tenho certeza de que as linhas em que ela se mostra são feitas de fio cortante, material com a acidez da filosofia.
Seu maior talento está em falar de ossos expostos e feridas abertas e ainda conseguir manter a aparência de pluma ao sol.

Há artistas que escolhem a profissão para mostrar sua existência da forma mais tocante à humanidade.
Eu só quis fazer algo para aliviar o que eu guardava sob chaves imobilizadas pela falta de segurança que, em verdade, já estava dentro.
E descubro a cada letra e passo que não escolhi a literatura como expressão, mas é ela, arte de escrever, viva, independente e universal, que se expressa por meio de mim.

Por isso, tive certeza de que já não era amada quando meu antigo namorado e consultor literário julgou o último texto que lhe mostrei ingênuo.
Aqueles parágrafos eram como meus membros. E, dizendo que seu conteúdo era bobinho, ele desfez sua importância e também desmontou meu organismo interno por inteiro...

Sou mesmo uma figura, figura de linguagem.
Aparência dócil e pura envolvendo fúria indignada com contradições de todo tipo e toda sorte de loucura que por sorte existe.
Faço-me de forte, mas o que me faz é o puro sentir.

E sentir é sempre sofrer. Mesmo quando o céu se abre ou alguém lhe sorri.
O sentimento de verdade não é para quem quer bem estar mas para quem aceita a felicidade imperfeita.
Como vai você? Pergunte-me agora. Direi-lhe que mal, muito mal, mas feliz, acima de tudo feliz, por me deixar cair livremente por páginas acessíveis ao próprio olhar e à vista das janelas mais abertas para o apreciar do sol.

Tudo o que sempre quis foi saber os porquês de mim.
Como ando sobre frases e respiro rimas,
Desbaratinei da dúvida e me defini:
Tenho muito gosto em me apresentar: mulher abstrata, corpo alegoria.


TRAGO

Alguém aí me viu?
Em todo canto eu procurei,mas só cantei e não me achei...
Quis sair pra me buscar em algum lugar lá fora do corpo ou no fundo de outro copo,
mas a brasa apagou com a última fagulha de lucidez.
Procura-se.
Procura assim a sensação de liberdade não perecível.
A eternidade deve ser mesmo o álcool que não evapora...

Quem me trouxer aqui onde estou ganha a recompensa de se descobrir com valor maior que todo o ouro.

A última notícia que se tem do ser perdido é que é feito da loucura poética da própria embreaguez.


PÔR DO SOL

Bola de ouro amarela, tesouro,
Aos poucos laranja, seu sumo é no céu
E escorre e mancha o branco da nuvem,
Faz nela ferrugem, lembra a cor do mel.

Mistura com o azul, pouco a pouco o dourado,
Verte tudo em pétalas da mais rosa flor.
Sem saber se pro belo há significado,
A pupila dilata, segue a luz aonde for.

O piscar de relance perde a chance e não olha
De repente o amarelo que insiste e retorna,
Se une ao cenário com respingos já escuros
E, num pulo ao mar, é da noite seguro.


PONTO DE VISTA

Na vida, quis ser reta,
mas a reta é infinita em essência.
Virei então reticência, como é todo o entorno, como é o tempo e o mar...

Tantos pontos de ônibus e pontes teimam em por mim passar,
como passam pessoas e palavras sem nem parar...
E entre pontos de parada e jogo, a cada dia, mais um ponto...

Pode ser exclamação, interrogação, ou simples pausa da vírgula envergada na várzea a suspirar...
O que sou é uma porção de pontos ligados fazendo o desenho de um corpo,
e um pântano de pontas na alma a apontar.

Sigo na ânsia por um ponto final, sem entender que três valem mais que um...

A incerteza é mais comum,
não porque trivial, mas por ser de todos!

Vejo que o amanhã é mais um ponto no placar, mais um pente para a mente desembaraçar,
mais pontuações indicando o que ainda virá!

Sou um ponto no mundo,
e a reticência continua e vira reta...
Quero, então, ligação direta e sem ponto final
com o bem e o mal!

Serei intersecção das setas das sensações,
Farei sair todo raio do centro do coração,
E agradecerei cada ponto imposto pelo oposto,
Pondo-no na ponte pra salvação!


CONGESTIONAMENTO

Meus problemas são só parte do que parte de mim
E me partem mesmo assim,
Sem que eu os deixe partir...

Enquanto isso, o mundo à parte se reparte
Dou partida e abro a porta de mim
Mas, o espírito, mesmo perto de sair,
Aperta-se e aporta no fim.

Medo...quem não tem?
Fraqueza...quem tem aí?
Solidão é um sólido grande que passa por cima da solução.

Desprendimento...sempre quis!
Liberdade...você quer também?
Duro é partir de parte alguma,
Quero sumir e ter pra onde voltar!

Indivíduo, em verdade, é coletívuo?
Quis conhecer tudo e todos,
Cuidar das outros e ser cuidada...
Mas fui mesmo descuidada quando esqueci de me cuidar!

Equilíbrio? É coisa do circo, não para mim!
Serenidade? É quando o céu está esfumaçado e não sei ver o que há por trás!
Fé? Vou fazer uma no jogo, que é de sorte que tudo se vence!

Tanto tenho que aprender para não ficar assim partida,
Logo na partida, perdida e sem rumo, não sou a única a ficar para trás...
Na pista com destino à felicidade há sinalização?
Só vejo placas de anúncio e não há fiscalização!

Corpos seguidos formam tráfego insuportável para a alma
Corpos colidem e formam tráfico ilegal da calma
Tenho um semáforo no coração
Ele pulsa cores e confunde a visão

A partida é chegada!
A partida já é a chegada!


FILOSOPOESIA

“Só sei que nada sei”, certa vez disse o pensador...
E tantas coisas são ditas, ditadora não serei!
O ditador a dor dita, e o que quero foge à vista...

“Você tem que se valorizar’, ouvi dizer o terapeuta.
E jamais antes quis dar atenção quando se amar era ser egoísta.
Mas, agora, vejo claro o brilho do meu anel sem me cegar...
E aponto sua luz pros próximos passos, da melhor forma, no solo dar.

“Ama ao teu próximo como a ti”, desta lição eu gostava...
Mas, indecisa e perdida de mim, o amor ao ser próprio me faltava!
Em movimento humanista, movo-me em translação e sou o centro...
O homem é tudo e tudo em sua essência é amar o outro pra sua existência!

Racionalismo e antropocentrismo...entenda-se bem o que foi descoberto.
Era só pra pensarmos sobre nós mesmos e não esquecermos os sentimentos...
Mesmo porque o sentir é instantâneo e não pautado em regras de fora...
Sua interiorização exige que a alma seja tocada e toque o que o amor explora...

Sou a favor do conhecimento profundo e faço meu eu objeto de estudo.
Quero clareza e sentido do agir para fazer acolhedor o lar que é esse mundo.
Busco ser centrada e não, o centro.
Sou o sol da minha força e tenho uma bússola na forma de lua.
O satélite natural da intuição é iluminado pelo saber que encontro na rua.
Caminho assim pelo espaço, entre astros que ascenderam depois de passar pela Terra.
Dou voltas em torno do outro e giro em torno de mim, faço simples adorno da ciência.
E tudo o mais: as nuvens, a chuva, o mar...estão em mim e sou deles parte...
Parto, assim, nas minhas viagens de sonho e santidade que, escondida, em todos arde.
Aprendi a ler na escola, mas lá não me deram os melhores livros...
Li a verdade em atos à sombra dos holofotes do poder descabido.
Tanta glória não cabe e não tem cabimento no entendimento do evoluído.
Artista, herói, líder de povos, andarilho em calçadas, o estranho e diferente!
Quem tem coragem e recusa a sorte imposta traz uma luz dentro da mente.

E questionar exige tolerância,
Amar exige generosidade,
Sorrir exige paz,
E não devo exigir nada de alguém.

Devo ao banco um papel inventado.
Devo a mim mesma serenidade, esperança e alegria.
Devo aos demais respeito e autenticidade.
Devo tentar o impossível e aceitar a maldade.
Só sei que nada sei, e tudo saber não é a pretensão.
Aprenderei mesmo com quem não quer saber,
Pois a vida é infinita enquanto lição.


LEVANTAMENTO DE PESOS

O peito do pé de Pedro era preto,
mas, tão bem roxo fosse, isso tanto faria.
Ainda que tentasse ver o que já não notava,
sob a esfera da pança, quase nada veria.

Pé de chumbo, nunca parava, tomado de pressa.
Mão de vaca, dizia ao filho: -Todo gasto sempre meça!
Contava o dinheiro no fim do mês e não fazia conta do valor que tinha.

O corpo mole era osso duro de roer...
Só lembrava o próprio pé para batê-lo em teimosia.
E não dava o braço a torcer,
enquanto dava de ombros para qualquer alegria.

As pernas, usava para tentar abraçar o mundo,
A barriga, exercitava no empurra-empurra dos problemas diários.
Com alma fora de forma, fez da carne um escudo,
resistente e guardado em seu físico de armário.

Gabando-se durão, não sentia para os passos sentido.
Pedro no caminho, no caminho, havia uma pedra,
fez que não viu o obstáculo e pisou no cascalho, o dedo ferindo.

Mas, não se abalou e o sangue frio limpou
na folha de jornal que encontrou jogada.
Sua hemorragia misturou-se à do cara da foto
da página policial, ao lado de uma palavra cruzada.

Maior prova de força viria só depois.
Seu sobrenome Pedreira, sobrenatural Pedro foi,
quando, em choque com um carro fora da faixa de pedestre,
deixou-se cair em faixas sobre o asfalto silvestre.

A cabeça dura, menos lesionada, quicou até a sarjeta
e voltou para se juntar às outras partes do organismo,
inabaladas e habituadas a estarem assim separadas.
Encaixaram-se membros em fratura exposta ao tronco ruído,
diante da multidão, com a cena, extasiada.

O que aquilo significava? Um morto-vivo andando podia ser sinal do fim do mundo...
Burburinho tamanho foi menos choque e mais sede de sangue.
Logo o tumulto se dispersou, e ninguém mais viu como anormal aquele instante.

Pedro petrificado e, cada vez mais, putrefato
continuou seu rumo solitário e indolor.
Vez ou outra, descansou moribundo na calçada
e somou aos mendigos, sua ferida e bolor.

Até que se deixou cair, sem entender o porquê da fraqueza.
Tinha que se levantar, de novo, duro, para pôr níquel no bolso e comida na mesa.
Porém, já não se agüentava em pé o pobre Pedro Pedreira, pai preto e pedreiro.
Sua morte serviu para que descobrisse um dia ter vivido, pois, de baixa pressão, seu pulso normal era zero, e o batimento cardíaco, excluído.



EM DIGNA AÇÃO

Qual a passagem para a vida digna?
Quem a dizer se digne, às vidas, digam-na,
Pois é difícil, enfim, alcançar
lugar que não se sabe se existirá.

Dois pés descalços seguem sem rumo,
enquanto temos discursos calçados em legitimidade.
É filho legítimo do mundo quem vive nas suas beiradas
e ali é mantido pelo centro das decisões tomadas.

Traçando limites para efetivar a dignidade humana,
é a vida como um todo que tornamos limitada.
E ainda esperamos a chegada da digna idade humana,
em que haverá maturidade e crescimento da alma.

Tendo em conta o que é estritamente legal,
nosso julgamento diz, estrita mente, o bem e o mal.
Legal para o homem simples é uma mesa farta,
Realidade em suor, mas que sonhos não parta.

Afinal, a segurança jurídica alegada, além de impossível, não é a mais almejada.
Segurança nenhuma conhece quem vive na favela.
Droga de vida, vida em droga é como luz de vela.

Não há mais tempo para pensar como manda a teoria.
Quem age hoje é só o disfarce da dita democracia.
Pois, a máquina não funciona sem o homem por traz
e só a consciência humana o juízo justo faz.

Tomemos, então, o poder de governar para nossas cabeças!
Faremos a revolução do indivíduo e suas instituições às avessas!
Libertação individual é viver dignamente dentro de qualquer regra.
Liberta a ação e digna a mente do que, assim, a vida alegra.


CANÇÃO DE ACORDAR

É também da Mãe o dia que é dia da criança.
Vem a luz e o mundo gira como a rodada ciranda.
Tudo é sonho e colorido, ser feliz é brincadeira.
O abraço é o mais sincero, a careta é passageira.

Não tem mais cara nem tom,o velho boi da cara preta.
Sem feições, o egoísmo,em tudo, a todos alimenta.
Mas que má criação é essa? Vá pro canto, seu menino
e não cante mais cantiga, o silêncio é seu destino.

Já mandei parar de fazer arte! Você é novo demais para isso...
Talvez, quando envelheça, compre arte e diga, é rico.
Logo, agora é tabuadapara saber quanto gastar.
Quantas laranjas compro com tanto? Estude e só assim responderá.

Nana neném, que a cuca vem pegar.
Papai foi pro escritório, mamãe foi lipoaspirar.
Dorme tranquilo e entenda o que se dá:
o monstro é mesmo sua cuca no futuro que virá.

Escravos de jó, são adultos que jogam.
Sociedade é fantasia, velhas mentes histórias contam,
para buscar a alegria no fim de um arco-íris preto e branco,
até baterem à porta da morte com as mesmas certezas de um infante.

Mas aí será muito tarde e já se terá posto o sol nascente,
cujo amarelo foi desenhado pela mão de um inocente.
O cravo brigou com a rosa, em frente da minha casa.
Saiu ferido o pequeno botão que tudo viu sem dizer nada.

Se dissesse o que é injusto, ía pro castigo sem direito a manha,
mas, em tamanha falta de direito, o mundo é de todo punição ganha.
Acredita, o pequenino, no bicho papão
e, assim, se prepara pro medo da própria invenção.

Faz de conta que eu era livre, de leveza incalculadae, se fosse pêga, era péga-péga, com toda disputa depois acabada.
Porém, o homem jamais cresceu, nem quando meu pai era herói.
E é a pureza autêntica da sua alma o que o tempo áspero corrói.

Mas, vá para o quarto, filho, porque isso não é assunto para criança.
Num modo de vida censurado, entram só os responsáveis pelo fim da esperança.


CEM SENTIDOS

Será que a vida faz sentido?
Sentido que estou, não vejo resposta.
Sem ter ido ao que sou, não vi em que crer se possa.
Procurei um sentido em meus sentidos.
Senti, sentei no tempo e vi a vida que passava.
Santa, quis amor infinito
e, amada e amuada, assim me limito...

Preciso mudar a cadência dos velhos passos de criança,
e a decadência da árvore onde me plantava longe do chão.
Abafar as conversas entre as fadas que moram na mente,
para ouvir o murmúrio da própria condição.

Dos troncos a que me agarrava fizeram papel
e fiz papel de boba falando com a folha da planta e do livro.
Se, para o que guardava meu peito, todo homem era morto,
precisava manter, no que não existe, algo ainda vivo.

Meus versos ficaram livres de repente
e pularam das linhas com energia independente.
Tentei fazer o mesmo e saí do conto inventado
para seguir outras histórias e escrever com rastros.

Faço riscos no caderno e planejo arriscar.
A sujeira das ruas me risca a pele sem poder parar.
Paro e penso, mas o senso do sentido não me ajuda.
Talvez a busca em outro sentir seja o que tudo muda!

Aos poucos, sou livrada da dependência do comodismo:

Mais um dia sem beber,
Mais um dia para morrer,
Menos tempo a temer...


AUTO-ENTREVISTA

Acordei e me vi presa numa corda
E entrelaçada assim, entreguei-me ao pensar...

Entre conviver e viver com alguém,
Entre pôr-me em ser e impor meu ser,
Entre seguir rumo a planos ou seguir planos como um rumo...
Entre fazer arte e deixar que a arte me faça...

Às vezes me perco no fluxo de dias e idéias...
E me aproximo da morte sem ruga de temor do fim!
Quero me conservar em risos e marcas de expressão,
Mas, há o que fica entre o sonho e o real a me acordaçar...

Tenho simpatia pelos loucos e alienados que optaram por um lado só.
Mas, continuo entremeada pela vontade de lutar...
Entrar num entrevero nunca foi meu forte,
Só tento não fugir dos entraves, ainda que entristecida...

E intrigada colho os trigos no campo da lida,
Pelo entender intuitivo que vem do entreolhar.

Estou na bordinha do mundo, no limite geográfico que a realidade alcança...
Entre cair e ficar, descobri, não há dúvida...
Ao menos essa pergunta se responde com o não duvidar!

Entrevistada constantemente pela vida,
Busquei na alma a voz de verdade ou mentira que me faz cair e levantar.

A existência não é feita entre fatores, mas dentro dos seus atores.


MÁGOA

Hércules é a favor da pena de morte. Para ele, não há Zeus capaz de argumentar pela defesa da tolerância ao mal. Alguns atos não podem ter perdão, no seu modo de ver. E, caso o mundo fosse detetizado das almas perversas, sem dúvidas, sua vida e também a dos outros seria outra.

E como seria? Como seguiria a existência, se Hércules mandasse exterminar todos os homens ruins da Terra? Quem restaria? Talvez, para implementar a idéia, precisasse criar diferentes graus de erros merecedores de punição severa: tropeços, falhas, injúrias, agressões físicas, até chegar à crueldade digna da extinção da vida de quem praticou o mal.

Perdido nas dúvidas que lhe envolviam quando da idealização de tal limpeza da Humanidade, Hércules procurou luz no posicionamento de dois dos maiores sábios de seu reino. Um deles lhe propôs que fizesse um mapeamento dos criminosos mais temidos da região e, em seguida, vasculhasse suas vidas para que qualquer punição futura fosse muito bem fundamentada nas provas de sua maldade.

Hércules ficou pensativo. "Ter fundamento é deter o poder da justiça? Será que fazer justiça tem fundamento?"

Foi então que o herói ouviu a voz do segundo sábio. A sugestão dada foi para que se mudasse para terras distantes, onde o ar fosse puro e as pessoas caminhassem tranqüilas e bem protegidas pelos becos mais ausentes de claridade.

Hércules dispensou os serviços desse segundo oráculo. "Meu lar e meu povo são o que sou. Quem pode conhecer a alma humana se não leva em conta onde ela está?", enfureceu-se.

Por fim, o ser metade Deus, metade homem, acatou a primeira das sugestões que lhe foram profetizadas. Deu, então, início à retirada do sopro de existência das carcaças que não faziam jus ao proveito dessa dádiva.

O primeiro a ser executado, sabia bem quem seria: o infeliz que tirara a vida de Afrodite por não ter conseguido manter a sanidade diante do desprezo ao amor e à adoração que pela virgem mantinha.

Hércules também um dia amou Afrodite e agora esse sentimento, de novo, sangrava. O homem filho de Zeus passava, assim, a só usar sua parte mundana.


PAROXETINA

A condição humana numa cápsula.
Tantos espíritos comprimidos...
Todo riso seja condicionado
e cada bula se a engula.

Alguém, depois de trilhar uma ponte revestida de tubos de ensaio, agora, está entubado e ainda não se deu conta.

Porque a única conta que faz é do pó que põe na fórmula para encher a conta no banco.
E eu banco a idéia de comprar o alívio fabricado por não saber bem como calcular.

Deus fez cérebros capazes de somar descobertas ao início da sua iniciativa de vencer o medo.
A mente é mesmo um diamante com brilho que ofusca e pontas que escondem nós e alavancas.

Mas, eu já não temo o medo.
Sofrer não é o fim do mundo, apenas dele parte.

E parte da receita que trago para tratar meu desalento vem do pensar que não sou o melhor nem o mais frágil dos seres.
Apenas sou o remédio para todos os males do mundo
sem cartela de balas!

Matar quem me deixou presa ao vício da tristeza não me faria menos triste.
E quem sou para exigir que o sol me doure a pele sem a queimar?
Sou sujeito como qualquer sujeito às sujeiras do ar que trazem doenças...

Mas, minha mente, ah...essa mente e finge funcionar empregada em números, causas e leis de gravidade.

É grave a idade que hoje temos.
Anos inconseqüentes de prazer anestésico e imune à dor.

Bem sei que erro e posso no mal continuar.
Mas, faria diferente se disposto a mudar.

De dentro de uma pílula, alguns jovens avistam o lado de fora com desconfiança.
A liberdade comprada e combinada em doses bem calculadas ainda não lhes fez ser livres para ser o que sonham.



ALTER-EGO

Não convivo bem comigo quando estou triste
O convívio com o vivo tempo às vezes é cativeiro.
Será que ia ter náusea de nascer no céu?
Será que o nível do mar indica a profundidade do navegador?

Nunca tive respostas
Nuca livre e exposta
Queria beijos para preenchê-la
Queria o sono sem som de dúvida...

Mas, nasci assim: só!
E cresço só se me relaciono.
Tem tanta gente no mundo,
Mas ninguém no meu sonho.

Sou como galhinho verde ao vento.
Se cai temporal, caio do tronco também.
Sapo que muda o termômetro conforme a estação,
Passo a estação de metrô procurando por alguém.

Só que ninguém me conhece,
Não há quem conheça sequer a si
A simultaneidade de coisas me afasta de mim.

Introspecção, introjeção de medo e dor.
Queria um seguro para a tristeza,
Mas nem o amanhã é uma certeza...

Por isso escrevo e quero que acabem
O verso e a estrofe molhados que caem dos olhos.
Quando ouço música alegre, volto o disco...
Acaba a pilha do rádio e acabo em cisco.

Até que resolvo não me gastar assim,
Como os cigarros que se consomem pra enganar o sofrer.
E tento acender a fé que me faz acordar
Mas já penso na parafina, fina paz que se esgotará...

Hoje vivo o ontem
Hoje sinto a queda de amanhã
E o presente guardo embrulhado com medo de o perder,
Receio, o que recebo é cavalo de tróia e vai me vencer.

Quando tiro o laço da caixa preta das minhas escolhas,
Vejo o vulto vulnerável do vento que traz coisas boas.
E me contento em ver,
Não me contento em viver sem a verdade do vir...

Depois de anos, consigo, escrevo o presente texto
E controversa me presenteio com meu contexto.
Encontro o verso mais presente no meu conceito
E, como poucas vezes, sinto-me presente no mundo,

Do mundo presente, posso ser se não sou mudo.
E se mudo, ainda imundo, imunizo minha mente
Por fim, não sei findar o que ora começo de repente...


PREFÁCIO

O pré-fácil caminhar pela existência não basta.
Há que virar da alma a capa
E seguir as linhas do destino com coragem.

Capitulo Novo: Folhas ainda sem orelhas para serem puxadas pelo passar do tempo.
E, nelas, ausência de numeração para indicar o tamanho da historia.
Ruma-se ao desconhecido com a única certeza da inevitável chegada a um fim.
Somos livros de conteúdo por aprender,
Seqüência de fatos digitada em anonimato.

De autor sem cara, temos cabeças que, a cada dia, um pouco se quebram diante de vocábulos de sentido complicado.

Quis contribuir e acrescentei as teorias mais avançadas ao meu eu, buscando satisfazer a curiosidade humana em notas de rodapé.
Caneta, filosofei, caminhando num templo, em cujo interior cavernoso a voz de um cientista ecoou.
Trabalho pretensioso de amador, a narrativa, de pronto, perdeu a lógica e a ação, tornando-se entediante.

Foi então que parei de pular as páginas da vida, que voava rápida como papel ao vento,
E deixei de interromper minha leitura para fazer perguntas ao dicionário do inconformismo.
Com olhar desprendido, vi a beleza da caligrafia desenhada nos dias, sem apressar a chegada da conclusão do texto,
E percebi que tudo o que queria ser era apenas a personagem de um romance água com açúcar.

Juntar palavras com preposições e sabedoria,
Interpretar todo o conhecimento guiada por esperança e consciência,
Da vida, fazer literatura patrocinada por generosidade entre filhos da mesma mãe natureza...
Com isso, quero todos os dias tentar escrever o futuro, baseada nas letras da realidade em volta.

Sou livro de contos tristes e felizes
E as melhores descobertas sobre mim estavam escritas no ser ao lado.
Para compreender minha história, antes folheie a si mesmo com sensibilidade,
Pois mesmo a mais fiel análise de toda obra se encontra, em parte, no espírito de quem lê.

Aberta ao que queira ser, de mim, leitor,
Não tenho sumário, nem contra-capa,
Somente o título, Aprendiz.