Gallery





AUTOFALANTE

Armando era anarquista e o mais politizado da turma.
Acordou cedo para o trabalho aonde foi de carro e de onde voltou xingando os que como ele dirigiam.

-Seu puto, mal-educado! Não vê que não é culpa minha se esta merda não anda?

E de quem era a culpa, se não era de Armando, nem do homem armado que, atrás, buzinava?
O grande culpado é o agressor que não existe.
Trata-se do monstro que vive escondido entre pilhas de documentos, fichas, registros de nomes e moedas não registradas.

Os que mais o alimentam sequer sabem da sua existência.
Não enxergam sua juba quando entram no ônibus lotado,
nem escutam seu rugido abafado pelo barulho da rotina quando andam maltrapilhos pelas ruas sujas.

Armando sabe bem disso e tem consciência do rastro da fera presente no ranso de ser para ela ração.
Sem mais acreditar na mudança da última palavra da frase anterior de c cedilha para z, nosso anacro anarquista arqueou-se.

Mudou-se para um canto isolado das circunstâncias.
Passou a andar de bicicleta, largou o emprego e hoje vive ajudado por amigos e sustentado pela venda de livros comunistas antigos.

O altivo autista Armando, altruísta em espírito e autoritário em idéias, preferiu criar um espaço elevado e só dentro de outro do qual é inquilino.

Onde estará o fim dessa dívida que temos pelo que pagamos e não usamos?
Onde posso ajuda procurar se, quando eu reclamar tente, quem me atende é parte do que vive a me roubar?
Numa busca cansada por fazer meu grito chegar a algum lugar, sigo atrás de um autofalante quando o som sairia mais alto, de uma caixa torácica com cabos ligados a outras cordas vocais.

Armando já nem se fazia tais perguntas quando morreu agarrado a sua teoria política distante do governo e desgovernada.

0 comentários: