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PASSAGEM

Falta-me a serenidade idosa dos que sabem
se acomodar sobre sofás pacientemente macios,
Sobra-me o egoísmo infante da busca
por conhecer o não sabido.

Embora o que se tenha como certo,
pode ser que certamente seja o nada.

O tempo é a despersonificação da minha ignorância
e, a cada dia, em qualquer respingo último de
sol absorvido pelo lenço úmido do ceu,
leva-me um pouco mais para perto do lado atrás
de onde dorme a noite.

Preciso de um descampado de ideias
onde possa gozar a visão dos dias se apagando,
à medida que surjam as estrelas.

Mas, sou um pouco firmamento, quando,
enigma, animo-me a tentar guardar os raios do que vejo
sob as nuvens dos meus abraços.

Tudo em vão.
Cabides descabidos mantêm memórias desamassadas,
enquanto o vazio infinito das horas preenche
cada poro alienado do corpo
com o sentido de urgência.

Sou a personificação do tempo
em tudo o que ele tem de escasso,
mas não tenho aurora nem crepúsculo,
apenas passo e me desfaço.


BALDEAÇÃO

Mais uma vez, ele acordou,
apertou os parafusos da articulação cansada,
poliu a carcaça à prova de coices metálica,
e caminhou rumo ao buraco que, de novo, levaria
ao mundo debaixo.

E então, frente aos trilhos,
esperando o já sabido,
encaixou sua peça na engrenagem,
preparado-se para a viagem.

Mas, o dia seria diferente,
o vagão não veio, e a massa impaciente
cresceu, vazando pelas grades da coxia.

A voz do além pedia paciência,
e prometia solução com urgência.
Enquanto, sem saber o que ocorria,
ele bateu automática continência.

Policiais se aproximaram
quando alguns desajustados perdiam a calma,
E a voz ainda a ecoar pelos túneis sufocantes,
agradecia pela compreensão dos viajantes.

Problemas técnicos com causa desconhecida.
ou causados por algum militante suicida?
Sabotagem de político, ou alguma ação distraída?

Ele não procurava resposta,
nem sabia perguntar,
só queria que lhe deixassem chegar a algum lugar.

E, se não podia ir ao trabalho, o que mais faria?
Caminhando pela Sé, sentiu-se sufocar
pelo ar da quebra da rotina.
A desorganização das ruas subiu, cobras,
amarrando-lhe as pernas, sem deixar que corresse.

O entorno tomado de gente sem rumo,
Era entornado sobre os interiores com selvageria.

Ele também agora via o metal do seu corpo escorrer
deixando aparecer uma pele desbotada,
mas cheia de veias, por onde circulavam
raiva e dor coaguladas.
O trânsito, o relógio e as pessoas parados,
E só o sangue pulsava,
com pressa de tirar o atraso.

A inquietação vinha acompanhada
de um medo libertador,
indignação corajosa,
só experimentada pelos loucos.
Um receio de, na ausência de ter aonde ir,
Não se saber mais voltar quando esse lugar existir.

Interrompido o transe, eis que vem a resposta pra dúvida geral,
Um botão de emergência apertado tinha sido a razão do caos.
Uma alavanca tem capacidade para parar a humanidade.
E basta um só gesto pra derrubar toda a mecanicidade.

Porém, as verdades despencam com fios
em curto circuito,
até gambiarras objetivamente humanas
religarem a virtualidade dos fatos.

No dia seguinte, ele não acordou,
apertou os parafusos da articulação cansada,
poliu a carcaça à prova de coices metálica,
e caminhou rumo ao buraco que, de novo, levaria
ao mundo debaixo.

A massa havia diminuído,
os olhos vitrificados fitavam o vazio.
A condução, agora, vinha,
E ele com um alívio insosso,
deixou-se cair sobre a linha.


HOJE TEM MARMELADA

Uma das minhas maiores diversões, quando criança, era ir ao circo. Gostava de ver o domador se arriscar frente aos leões e apreciava a angústia da torcida para que o atleta esguio, com um macacão colado ao corpo, não despencasse do trapézio.

Assustava-me, porém, o globo da morte. Aquilo era perigo demais. Lembro bem que o barulho provocado pelo contato das rodas das motocicletas com as grades da esfera gigante me causava mais irritação do que adrenalina. As atrações favoritas eram mesmo o mágico com toda aquela habilidade para tirar encantamento de um simples baralho, e o homem com roupa estampada de estrelas, que se equilibrava sobre a corda bamba.

Num picadeiro tão cheio de pessoas dispostas ao risco, dois dos artistas faziam pouca diferença no meu imaginário infantil. Afinal, tudo o que eles tinham para oferecer era um nariz vermelho, sapatos grandes e pontiagudos, olhos que esguichavam lágrimas de mentira e um largo sorriso, que não se sabia se era natural ou ilusão feita de maquiagem.

Já faz tempo que não me permito ir para debaixo de uma lona colorida como aquela, onde as pessoas dividem o olhar entre as performances do centro da arena e o cachorro-quente. Da palavra que dá nome a esse lugar feito de uma arte pitoresca só restou seu uso como parte de uma expressão, com a qual os adultos dão nome à política sustentada em demagogia: “pão e circo”.

Por falar nisso, às vésperas das atuais votações presidenciais, decido adiantar a passagem do tempo de um sábado monótono, almoçando frente à TV. O horário eleitoral traz desde o cantor mal-sucedido que tenta se pendurar num cabide de emprego, até a mulher com nome de fruta que balança os quadris feitos de geleia. O show tem também uma mulher barbada, que conquista espectadores ostentando pelos postiços que emprestou de um certo companheiro. Em seguida, um senhor baixinho de bigode farto, a quem só falta o chicote, promete derrotar o leão da receita, enquanto jogadores de futebol fazem embaixadinha com uma bola murcha de ideias.

Já o outrora esperado ilusionista agora virou carta marcada. São vários os senhores de terno que fazem bem o truque da moeda invisível. Eles até deixam o povo tocar o níquel para ver se é real, antes de dar sumiço ao objeto num passe de mágica. Os contorcionistas da esquerda, por sua vez, espremem-se dentro de caixas, cuja chave eles próprios perderam. E os políticos equilibristas continuam ídolos na arte de se manter na linha, mas desistem do próximo passo, se não estão suspensos por cabos de aço.

Eis que surge, então, dando a volta por cima, o esquecido e humilde palhaço. Com nome de erva daninha, ele não precisa de esforço para arrancar risos porque sua presença é, em si, a piada. O humor negro da figura sem-graça não supera sua tragicômica ascensão na preferência do eleitorado. “Pior que tá não fica”. Será que as pessoas acreditam mesmo nisso, ou também querem uma ponta como comediante, para tirar sarro dos candidatos que, por trás da pose séria, fazem zombaria? Pode ser ainda que, por algum motivo, tenham se identificado com o humorista. Ou, tentem pela primeira vez eleger o bobo da corte, para se livrar do encargo.

Com o fim da zorra gratuita, continua o noticiário abarrotado de denúncias repentinas e casos de corrupção, que são lançados para chamar a atenção, como malabares ao ar. A diferença é que as informações jogadas assim ao alto, quando puxadas pela gravidade da falta de fundamentos, não trazem a leveza das bolinhas coloridas que impressionam a vista sob as mãos ágeis do artista, mas sim, o peso e o ruído estridente do globo da morte.


SUJEITA

Quis fazer poesia sem verbo,
nem sujeito,
só objetos cheios de cor, cheiro e gosto,
que me chagessem a cada um dos sentidos
abertos, à vidos por vida.

Mas, fui aparecendo nos espaços entre uma
palava e outra,
espaçosa, ainda que fina, abrindo os braços,
como quem busca ocupar um lugar qualquer,
desde que espaço.

Talvez não conheça tantos objetos assim,
ou seja eu o objeto mais direto
e capaz de trazer e causar sansações,
tanto quanto temer os outros elementos
do predicado onde estou.

Ou ainda, os objetos corram de mim
por saber o que lhes espera:
resumidos, consumidos, definidos, contextualizados...
Seguro-os por um instante, que finda quando ainda
não estou safisteita, depois de tirar proveito.

Retirada, ausente dos jornais que compro
e piso sobre o forro improvisado no chão,
solo que envolvo de realidade para não arranhar,
corro de novo à página branca,
esperando para me ver de novo cair pesada,
folgada e grande em cada canto vaziamente
cheio da folha.


HORAS

Quis passar por tudo,
passando a limpo os dias,

Mas a vida é que me limpou
de raros espaços
para encher cada fresta do tempo
com palavras.

Essa tal linguagem
fala sozinha.
E eu me abandono calada.

Quis conhecer tudo,
mas fui parte de nada,
vi tudo de cima,
deslocada.

Até perceber que meu lugar
era a falta dele,
rarefeita de pessoas,
pouco dispostas a visitar o vácuo.

Evacuada do que mastigo com gosto
sem digerir,
abro o verbo e mostro minhas falhas.

Conheço o que em mim é natural.
Mas, cultivo artificialidades.

Tenho um orgulho plástico,
ilustrado de letras,
Guardo covardia e temor
da essência que se esgota.

Choro lágrimas de sepúlcro
na flor da idade.
Despedaço flores sobre a
lápide que nasce.

E finjo não me importar com rugas,
quando sei que minha alma está
cheia de pregas.

Passar a realidade,
alisá-la a ferro
sem medo da queimadura,
deixá-la com a cor pura,
da presença ausente de tons,
e discursar sem voz.

Não há silêncio que nada diga,
nem som que não se cale.

Ouvir exige não se deixar emudecer,
Falar é envolver a falta de barulho
com algum sentido.

Minhas significações
estão sufocadas
sob calendários
analfabetos.

HIPOCONDRIA

Há uma semana, trago esta sensação estranha de dor
que transpassa os músculos e ossos
mais próximos do coração.

Na sala minúscula do prédio, perto do metrô Anhangabaú,
um médico que fala esquisito me atende.

O exame admissional para o próximo emprego se torna oportunidade
para a queixa de algo sensivelmente indefinível.

Pressão normal, nada estranho para o doutor,
quando escuta as batidas do peito e os jatos de ar
que me vão do nariz às costas.

Ele me indica um ortopedista se a dor continuar.
Eu tenho a impressão de que é coisa grave,
dessas que não passam com sono e analgésico.

Talvez fosse a ressaca da noite anterior,
ou a tensão de se ver correndo por ruas cheias de pessoas,
sem poder parar para lhes ver a cor da face,
enquanto o relógio exige o caminhar veloz para, em seguida,
parar
em alguma fila,
dessas emperradas de gente com olhar vazio e ânimo pálido
diante de qualquer contrato.

Foram tantos os documentos e exames para provar quem sou,
que me deixei esquecer os porquês de onde estava
para pensar o que eu era.

Mas, de novo, a resposta não veio,
e voltei ao emprego antigo onde ainda restava um dia de obrigações
a cumprir.

Antes, saí da sala onde podia ler “Excelência em Recursos Humanos”
humanamente sem recursos para me ver com excelência.
Porque o que é excelente é insolente, se não significa
o que se espera da palavra.

Continuo com este aperto e às vezes o confundo com um infarto,
pânico besta e delirante que aumenta minha ânsia
por romper este corpo,
deixando meu espírito pueril correr,
para abraçar e absorver tudo o que ama
com urgência.

Penso, então, talvez fosse bom
que essa pontada no coração me acompanhasse
para sempre, lembrando a todo instante,
que um dia serei morte.

Euquanto espero, às vezes, pago comida para mãe e filha,
sujas e magras,
e também engulo a minha com enjoo.

Quero vomitar o que não sou,
quando sinto o gosto amargo da piedade caridosa.

Desejo beber algo forte antes de tomar a condução.
rumo aonde esperam que eu me encontre.
Quero fugir de ser respeitável,
se até meu respeito é condicionado por regra universal
e absoluta.

O conceito de bem me assusta.
A maldade me acompanha culpada,
mas não me condena.

Sou só mais alguém que sofre do medo,
corporalmente latejante,
de viver, casca grossa e oca,
sem o sangue que pulsa

e não se mantém com anticoagulantes.


GOSTO PELA LÍNGUA

Tenho saudade dos meus primeiros verões. E não só porque o nome da estação antes guardasse palavras mágicas, como praia, concha, onda e castelo de areia. Fazem falta as viagens ao litoral em família. Mas, o que realmente parece ter mudado não é o costume de freqüentar cidades banhadas pelo mar em tempo de calor, e sim, o próprio significado dos lugares e das fases do ano.

Embora eu fosse jovem demais nessa época em que as coisas eram diferentes, tomo as lembranças de meus pais por minhas, para explicar como, numa das minhas primeiras férias de dezembro, inventei um neologismo como forma de descrever a sensação de provar um picolé.

“Pito d’água!”, falei alto entre uma lambida e outra. Explodiram em risos a minha volta e, como eu seria incapaz de explicar as razões que me haviam levado a criar tal palavra, os adultos logo trataram de fazer as devidas relações lógicas para justificar o ocorrido. Como até então, para mim, pirulito era “pito”, obviamente eu teria entendido, naquele momento, que o pedaço de gelo que derretia espetado no palito de madeira só poderia ser mesmo um “pirulito de água”.

Para a família, talvez o episódio seja comentado até hoje com orgulho, por ter revelado a inteligência infantil de uma menina de cinco anos, em sua capacidade de fazer conexões entre os signos e seus sentidos, ainda que de maneira confusa e desajeitada. Mas, quando ouço esse tipo de relato e me vislumbro criança, rodeada por objetos e interrogações, vejo que a graça dessas passagens está, na verdade, no seu poder de ilustrar a riqueza das mentes que gozam a liberdade do vazio de conceitos.

Assim são as cabeças das crianças e também era a minha no dia em que conheci aquela delícia gelada e sem nome. Faço uma reconstituição forjada em criatividade, e me enxergo percebendo, na temperatura da gota do sorvete que escorria pelas minhas mãos pequeninas, sua passagem do estado sólido ao líquido. Naquele instante, a sensação térmica, ao invés de tátil, devia ser visual. Pode ser que tivesse cor de gelo colorido se dissolvendo...

Devaneio um pouco mais, e sinto o gosto do suco de uva congelado na boca minúscula, captando nele a impressão de ingerir pirulitos roxos mergulhados na água fria dos banhos de inverno. Paladar e tato eram uma única coisa, e os dois se misturavam à visão da minha imaginação sobre aquele conjunto de percepções inusitadas, em toda sua indefinição.

Da inocência que me incentivava a degustar experiências, hoje resta pouco. Mesmo assim, passados 20 anos, ainda tento me vasculhar para resgatar a infante engenhosa que fui entre valores morais, retalhos de teorias científicas, dados empíricos sobre a realidade, pré-julgamentos e convicções. Na última das raras ocasiões em que consegui tal feito, o realizei por necessidade. No exercício da profissão de jornalista, eu deveria descrever um assentamento da reforma agrária do interior paulista, como passo inicial para a redação de um livro-reportagem que contasse a história do lugar.

Voltei da vila de trabalhadores trazendo nos olhos o brilho das coisas que eu tinha visto, mas me senti incapaz de transferir toda essa luz ao papel. Como um carro sem combustível, empaquei frente às histórias do campo que havia escutado, deixando as emoções vividas durante a conversa com os assentados se soterrarem numa avalanche de cobranças profissionais.

Não enxergava modo de escrever minhas impressões mais sinceras, enquanto, a cada segundo, fazia questão de me alertar para o fato de que todo acontecimento relevante é informação, e as pessoas são, mais do que humanos, entrevistados. E eu mesma? O que devia ser? Um narrador sem alma? Via-me mais como o pintor de um quadro vivo, sem inspiração. Minha habilidade para a descrição só começou a despontar, quando resolvi entrar na tela, lambuzando-me com pirulitos de água e uma aquarela de letras.

FOLIA SEM MÁSCARAS

Fiz uma poesia encomendada
sobre carnaval,
e, como quem compõe um enredo
a partir do tema pré-definido,
porém, sem talento para tal oficio,
apresentei versos como vestimentas...

Palavras cheias de adornos,
mas sem o contorno
de um corpo de ideias que as ocupasse...

Não sou mesmo boa em fabricar poemas...
Só vejo um texto fantasiado de mim
quando não o inventei, e sim, despi.

Era eu quem seguia pela avenida sob plumas e versos,
buscando ser vista, não vasculhada...
O mote pro meu samba já tinha,
na caneta como disfarce,
e o seu desenlace era a alienação
do meu só pudor.

Enquanto isso, a multidão requebrava,
entornando copos e sentimentos.
Mas, eu, louca de sobriedade,
não sorri, nem cantei...

Quis reproduzir o que penso saber,
emperiquitada de jogos com a língua
e feita de júri pras próprias alegorias...

Assim desfilei sem o som do que eu sentia,
vendo-me olhada por arquibancadas vazias.

Tenho inveja da negra nua,
porque meu papel em branco
cobre até vergonhas imaginárias.

FOLIA DE CINZAS

É carnaval!
Há carne e aval
para usar fantasias de pele.

Cada um desfila sua anestesia
Enquanto ainda a carne vale,
e o corpo arde,
a salvo de uma vida em quaresma.

São tantos adereços sem endereço,
E enredos de vida em remendos...

A porta-bandeira se abre para o mundo,
enquanto o mestre faz sala ao ministro...

No quesito alegoria, a nota é dez,
mas qualquer comissão de frente fica atrás
se é formada de discussão séria,
e não dos quadris da mulata etérea.

Bateria para abafar o som
do choródromo interno,
Máscara para sorrir,
quando os porquês são de paetê,
Álcool para desinfetar a cabeça
de coisas sem purpurina...

Perco o brilho quando a festa acaba,
mas não me livro de coloridos disfarces.

Ó carnaval que venta um vendaval de carne,
e passa como um tufão, levando os dias,

Por que não inventa de arrastar com a multidão
um pouco de alma?
O carro onde vou pela avenida já vira sucata,
e sambo com a sorte, sem ter morada...

SOLILÓQUIO

Ser ou não ser?
Alguém, com razão perguntou,
mas não indago por que sou.

Existir ou desistir?
Viver ou sobreviver?
Gosto mais dessas questões...

Prefiro interrogar o nascer do sol, a cada dia.
A morte shakespeariana não me aflige.
A vida epicurista não me basta.

Hamlet teme a falta de sonhos do mundo dos mortos.
Eu sofro a ausência do sonhar no mundo em que vivo.

Nos jardins do prazer, meu deleite é um sopro de vento,
a balançar-me os sentidos.
Nos castelos da consciência, minha razão é fagulha de brasa,
a iluminar-me os significados.

Mas, para deixar de ser vil ou servil,
teria mesmo que escolher o punhal, ou o convento.

Covarde demais para a primeira opção,
para a segunda, falta-me vocação.

Tenho mania de encontrar razões para respirar,
e achar certa graça na dor.
Não sei se vivo por amor,
ou se amo para me distrair da verdade.

Talvez seja culpa da minha vaidade,
a intenção de forjar ressurreição em palavras.

Sou livre do medo de morrer, não por sorte,
mas por me assustar mais o descanso eterno em vida...

Que se abram feridas,
se for para trazer brilho ao porão onde dormem as almas.

O INVERTEBRADO

"As pessoas não gostam dos extremos". Usou a frase para ensinar as leis do consumo a uma sala cheia de alunos entediados. Num gráfico desenhado na lousa, ele explicava que os consumidores, em geral, para aceitar a troca de um bem, que possuem em pequena quantidade, por outro, exigem receber como compensação uma taxa de oportunidade maior. "É o chamado 'trade-off´'".

Quando se voltou novamente ao quadro, depois de falar durante alguns minutos, sem fixar os olhos nos poucos estudantes que ainda se esforçavam para ouvi-lo, uma bola de papel atingiu-lhe as costas. Ele pôde escutar alguns risos abafados, mas não havia sentido o golpe da folha amassada. Portanto, não saiu da aparente tranqüilidade com que sempre se portava, independentemente da situação.

Enquanto pegava a pasta sobre a mesa, antes de deixar a sala de aula, aproveitou para guardar alguns pedaços de giz no bolso. Eles poderiam fazer falta na aula seguinte. Na pasta, não levava livros, deixava-os em casa para mantê-los a salvo da derrubada de líquidos sobre suas páginas, ou mesmo qualquer arranhão na capa, causado por uma queda resultante da pressa.

Carregava apenas uma folha de papel escrita à mão, com o conteúdo da aula do dia, que era o mesmo do ano passado, com uma ou outra alteração. Chegando à porta do carro, foi abordado por um aluno. "Professor, o Centro Acadêmico está organizando um debate sobre Economia Solidária. O senhor quer participar?".

Em resposta, perguntou quando seria o encontro, já pensando que nada o faria abrir mão dos treinos diários de tênis. "Não posso", falou logo depois de ouvir que a discussão começaria às 19h00, horário em que costumava chegar à quadra do clube próximo da sua casa. O aluno já se afastava, um pouco desapontado com a recusa ao seu convite, feita de forma tão seca e sem justificativa, quando o professor acendeu um cigarro.

No mesmo instante, um pernilongo lhe pousou na testa e tragava seu sangue, à medida que também ele, ia sugando a fumaça para dentro de si. O inseto só parou a refeição, quando a vítima, como era de seu hábito, apagou o cigarro antes do fim, movendo-se apressadamente para entrar no carro.

Porque costumava correr daquela maneira, porém, ele mesmo não saberia explicar. Ainda faltavam horas para o encontro que havia marcado com a mais nova namorada, e ele chegaria ao local combinado em instantes, já que sugerira o bar mais próximo, como forma de poupar tempo e gasolina.

Irritou-se com alguém que buzinava a sua traseira e olhou pelo retrovisor para ver quem era o infeliz. Viu então que sua testa estava inchada, como a de quem tivesse acabado de levar um golpe com taco de baseball. "Mas, quando? Como?", gaguejou palavras sem sentido para si mesmo, tentando encontrar uma possível razão para aquele machucado imenso e, especialmente, para algo que lhe incomodava ainda mais que ter um galo na cabeça, num dia de encontro sexual.

"Como não vi isso antes?", completou uma frase inteligível finalmente, ao mesmo tempo em que arrumava o nó da gravata, tentando desviar o olhar da testa grande e vermelha, refletida no espelho. O Doutor Hector, como gostava de ser chamado, embora ainda não tivesse concluído o Doutorado em Economia, não ficava muito tempo sem olhar o próprio rosto.

Trazia sempre um pequenino e discreto espelho consigo, no bolso do paletó. Achava-se bonito, embora a maior parte das mulheres atraídas por ele sonhasse mesmo com a vida estável que poderia ser proporcionada pelo seu salário de estudioso renomado. Preocupava-se em se vestir de modo elegante e, desse modo, conquistava alguns olhares. Fazia questão de estar sempre com todos os fios de cabelo bem alinhados, e a gola da camisa com os dois lados bem simétricos. Por isso, a mania do espelhinho.

Pensava num modo de esconder a mordida de pernilongo, que ele nem sabia se tratar de uma picada de inseto, e não viu quando o autor do estrago se sentou tranquilamente no banco de passageiro. Depois de um rápido descanso, o bicho pôs-se a voar, batendo contra os vidros, para tentar encontrar novamente a fresta pela qual havia entrado. Nessa busca incansável, colidiu com o retrovisor em que Hector se olhava.

"Meu Deus! Quem é você? O que tá fazendo no meu carro?", gritou, saltando do banco de motorista para depois se esgueirar de costas, sem tirar os olhos do inseto, até alcançar os assentos de trás.

"Quem é você, filho da puta?". O pernilongo continuou a voar em todas as direções, enquanto o professor se abaixou como quem procura um objeto. Quando se reergueu com rapidez, o homem tinha à mão uma raquete de tênis, que segurou do modo como se empunham as armas em situação de combate. "Vem cá, seu invasor maldito!"

Os dois, homem e bicho, começaram então a duelar. O inseto, aparentemente em situação de desvantagem, não tinha mãos fortes para segurar instrumentos de defesa, mas possuía asas, e a agilidade livre por elas proporcionada, aproveitou para escapar dos golpes de Hector, passando por entre as brechas da rede da raquete.

O professor foi ficando mais e mais irritado, porque, pela primeira vez em meses, sentia-se impotente e sem controle sobre os acontecimentos. O mosquito passava, agitado por entre os pequeninos espaços, e nada poderia ser capaz de conter sua ânsia por manter-se vivo. A vida, esse bem precioso, embora pequeno nos seus instintos, consegue tomar mesmo dimensões gigantescas diante de circunstâncias mais ameaçadoras.

Mas, o homem não se dava conta disso. E sequer percebia que sua falta de asas, há tempos, o prendia num espaço onde só cabem os pernilongos.

"Chega! Agora você não me foge!". Inverteu a posição da raquete, e apontou o cabo do objeto na direção do inseto. "Venha, vem logo se for homem". O bicho, sem nada raciocinar que o levasse a temer, veio de encontro ao cilindro duro e, com um só movimento, Hector lançou para longe seu adversário.

O serzinho alado foi então cambaleando no ar e, sentindo as dores da tacada, deixou-se cair, mole, em direção ao chão do carro. Quando os últimos gestos daquelas perninhas finas ainda se faziam observar, entre espasmos do restante do exoesqueleto, um zunido baixo e, ao mesmo tempo, estridente, saiu do tórax do artrópode, tal como soa uma sirene de ambulância, nos ouvidos cansados do acidentado, entre a vida e a morte, a caminho do hospital. De repente, era como se o ambiente todo fosse contagiado pela dor experimentada pelo pernilongo.

Em êxtase e com expressão triunfal, o professor, limpou a estimada raquete, livrando-a de uma pequena mancha vermelha, que deveria ser do seu próprio sangue, até então alojado no abdome da vítima. Sem pensar nisso, nem relacionar a gota sangrenta com o machucado que tinha na testa- até porque ele continuava sem sentir qualquer tipo de dor, causada por aquela agressão- guardou sua arma novamente e voltou para o banco dianteiro do carro.

Ali, de volta ao seu habitual e quase nunca abalável semblante apático, olhou-se novamente no retrovisor. Mirou o espelho por alguns minutos, o tempo necessário para que sua calmaria se desconstruísse aos poucos, até se tornar assombro. A picada na testa tinha crescido e se transformado em algo ainda mais terrível e assustador. Hector agora tinha, no topo da cabeça, uma haste flácida, pontiaguda e oca, como se fosse agulha, da qual escorria, não sangue, mas um líquido venenoso, desses que só injetam os insetos.

A LÍNGUA DAS BARATAS

Devia ter uns sete anos de idade quando aconteceu. Na época, eu já sabia que não gostava muito de falar e passava horas brincando sozinha, ou observando o que me rodeava. O comportamento peculiar para uma criança gerou entre eu e mim uma relação de estranhamento, ao mesmo tempo em que me empurrou para perto das palavras.

Sempre me senti tão íntima delas. Talvez porque fôssemos, de certa forma, parecidas. Ambas tínhamos necessidade de tudo explicar e capacidade de dar ao mundo diferentes significados. Éramos igualmente complexas e falhas.

Essas coisas, muito antes, eu já sentia, mas não sabia. Fui mesmo começar a compreender naquela data. Era um dia de semana como outro qualquer, em que se deve acordar cedo para ir à escola. Mas, dessa vez, quando lá cheguei não encontrei Dona Maria, com a lista de presença nas mãos e os óculos pequenos sobre o nariz rígido. Ela tinha ficado doente e, em seu lugar, mandaram uma professora substituta: Cláudia, muito mais jovem e menos assustadora que a titular do cargo.

Quando já abria o caderno e me preparava para responder à consulta diária da tabuada, tia Cláudia disse que naquele dia a aula seria diferente. "Vamos fazer redação", disse ela, "e o tema é "a barata". Não dei muita importância para essa mudança radical na rotina de início, e tampouco havia me agradado o assunto sugerido. Mas, quando pousei o lápis na primeira linha do caderno brochura e me dei conta da liberdade que eu passaria a ter, deixando minhas fantasias mais silenciosas escorrerem para a vida real da página, foi como se uma enxurrada de ideias de repente invadisse um espaço do meu interior até então vazio.

A colega do lado parecia preocupada: "Não tem muita coisa para escrever sobre baratas". Eu discordei em silêncio porque, na história que eu acabava de criar, as baratas eram muito interessantes. Tanto, que a personagem principal, depois de passar anos sem fazer um só barulho, resolvia, do nada, falar comigo. Eu e a barata protagonista nos tornávamos grandes amigas na narrativa e, depois, ela me levava para conhecer o mundo das baratas, cuja entrada era um buraquinho discreto na parede da sala.

"Mas, baratas não falam", incomodou-se de novo a vizinha de carteira, quando leu minha redação. O texto dela era sobre um inseto que seu pai havia matado na noite anterior depois de ouvir os gritos de medo da filha, ao se deparar com o bicho na cozinha. Na hora, confesso que, pela primeira vez, tive orgulho de ser quem era. Eu, assim como Cláudia, achei o que escrevi muito mais divertido e instigante. Foi quando entendi que as baratas não me amedrontavam, e as letras podiam transformá-las nos seres mais nojentos ou magníficos que se pudesse imaginar. As palavras, então, não serviam só para dar nome às coisas!

Assim teve início o meu relacionamento com a língua. Para me manter o máximo de tempo perto da minha mais importante companheira, decidi ser jornalista. Depois de dois anos de trabalho, já não sei se fiz boa escolha. Os eventos e prazos para a finalização de pautas foram se passando, e eu desaprendi em parte a arte de brincar com os sentidos das palavras.

Ou, pode ser que eu tenha é perdido a coragem de jogar com os meus próprios sentidos. Piso sobre as baratas que encontro por aí para me sentir destemida, mas a verdade é que receio olhar para os olhos desses bichos. Eu e a língua precisamos de profundidade para existir. E estamos cansadas de ser úteis e usadas.

FOTOGRAFIA

Ouvi certa vez que entender as coisas pelo seu contrário é como fotografar a alma...

Tive vontade de saber se alguma vez já fui capaz de realizar tal feito, ou se, para isso, antes fosse necessário que eu me despisse de todas as vestes e valores com que tenho me apresentado a cada pose frente a um flash.

Olhei fundo e descobri que me cobria com conceitos sobre o que julgava justo e correto para garantir minha conservação e buscar defesa de eventuais intempéries.

Fui sim medrosa, não firme ou fiel àquilo que dentro carrego.

O que trago além do corpo não cabe num porta-retratos.
E, assim disperso, meu conteúdo mais rico não se deixa retratar.

Quando sou incapaz de vê-lo, não retrato erros da superfície.

Como será o meu avesso e também o dos outros?
Quem poderá um dia criar máquina capaz
de refletir o que o sol ilumina, sem queimar?

Minha verdadeira face queimou em várias fotografias
e agora me debato pra sair das molduras na parede em que me pendurei.

Meu filme acabou.

É preciso trocar os negativos
para registrar a vida
e se deixar por ela pintar.

JUÍZO FINAL

A praça estava vazia. Só ele caminhava frente à catedral. Os vitrais coloridos tinham algo de alegre, atrativo aos olhos, que o convidavam a entrar e descobrir o restante que pudesse haver de belo no interior daquele amontoado harmônico de tijolos.

Mas, conteve-se quando viu que não estava tão sozinho quanto imaginava. Na porta da igreja um mendigo empunhando uma bíblia, aberta numa página rasgada, rezava baixo uma oração que parecia ter aprendido noutro lugar que não o livro em suas mãos.

A voz do homem se tornou mais alta quando ele disse aos quatro ventos que era São João Batista encarnado, e estava ali para trazer ao mundo a palavra de Deus esquecida.

-Mas, que cara louco!- pensou, desviando-se da rota que até então seguia, para buscar uma parte da rua que pudesse ser atravessada, levando a qualquer lugar longe dali. Na esquina mais próxima, encontrou um boteco movimentado e aparentemente leve ao bolso cheio (na falta de outra palavra oposta a “vazio” mais representativa daquele conteúdo) do seguro-desemprego.

Escolheu a mesa mais afastada e fez sinal para o garçom, que embora percebesse o chamado, não mudou a expressão sisuda, nem se apressou em ser solícito, demorando alguns segundos para se aproximar com um cardápio molhado de cerveja.

- Quero a bebida mais forte e barata que tiver!- O garçom entortou um pouco mais a boca, já retorcida como se fosse problema de nascença, e sem dizer palavra, virou as costas e se dirigiu ao balcão onde um homem velho cantava um bolero, irritando o careca do outro lado, que pedia silêncio, enquanto apontava um relógio na parede amarelada.

Como a cena era instigante, fazendo quem a percebesse continuar reparando para saber onde ía parar aquela discussão, esqueceu-se por alguns instantes de tentar imaginar se o garçom mal-humorado voltaria com alguma sugestão de bebida. Foi então que o homem ranzinza o chamou de volta aos pensamentos sobre a própria vida, batendo com rispidez, contra a mesa, um copo de vidro, que serviu, até quase transbordar, de um líquido vermelho.

Quando ía perguntar que diabos era aquilo, o garçom depositou sobre a mesa, com a costumeira delicadeza, uma garrafa, trazendo um rótulo onde se podia ler, em letras coloridas, INFERNO. Um arrepio lhe percorreu todo o corpo desde o fim da espinha até o pescoço. E, antes que pudesse esboçar uma interjeição, o sujeito mal-educado deu, mais uma vez, as costas e partiu na direção de outro cliente.

Pensou em se levantar e ir para outro lugar onde fosse melhor tratado, e pudesse beber qualquer coisa com um nome um pouco mais simpático, ainda que centavos mais cara. Mas, seus olhos pareciam encantados pela cor sangrenta do copo cheio, contrastando com as outras cores da garrafa rotulada em tons combinados com um mau-gosto divertido, quase infantil.

Foi aproveitando esse lapso de nenhuma autocrítica, que deu o primeiro gole. O bolero do ancião ía aumentando e se tornando mais desafinado, à medida que crescia sua vontade de beber um pouco mais. Decidiu, então, virar o copo. Assim fez, quando, de repente e sem controle, chegou-lhe aos ouvidos a voz do mendigo da igreja misturada à cantoria do velho bêbado. Já ía se servindo outra dose, quando o som de um carro buzinando, o riso alto de uma coroa, recostada a uma das paredes do bar, e a conversa sem sentido de um grupo de adolescentes, na mesa ao lado, também se mesclaram à oração do maltrapilho.

-Tudo é tão harmônico. Parece até que estou apreciando uma sinfonia- disse a si mesmo, bailando em volta das cadeiras do bar, sem se levantar de onde estava. Imberbe no devaneio, não se surpreendeu quando outro mendigo, tocando uma gaita, aproximou-se e pediu assento ao seu lado.

-Fique à vontade. O senhor é São João Batista encarnado?

-O que foi que o doutor bebeu?- perguntou o outro entre gargalhadas.

-É isso aqui- IN-FER-NO, pronunciava com a boca mole e a expressão de um relaxamento angustiado.

- Virgem santa- riu de novo- Eu tomo essa todos os dias, mas não é pra qualquer um não...o doutor devia ir com calma.

Ele então piscou os olhos com força e viu o rosto do mendigo e a figura da garrafa perderem o contorno, tornando-se uma coisa só.

- Se existir mesmo céu, a vida lá deve ser bem sem graça, não é não? Esse negócio aqui- apontava a garrafa- tá sendo pra mim uma revelação. Deve ser melhor que o aiu, ais, asca, aiuasca, ou sei lá como é que se fala ou escreve isso. Aquela bebida santa que agora tá na moda...

O mendigo pareceu se entediar com o papo e voltou a tirar qualquer som da gaita. Os ouvidos dele íam se tornando cada vez mais potentes e satisfeitos com a algazarra sonora ao redor, quando o garçom grosseiro veio com rapidez, na intenção de expulsar o artista andarilho pra longe.

Já aproveitou, e trouxe, também, a conta e dois olhos vermelhos de sono e raiva.

- Cinquenta!

- Oi?

- A conta deu cinquenta. Desembolsa logo, que a gente já vai fechar.

-Mas, eu pedi a bebida mais barata!

- A dose é um real...e, o senhor secou a garrafa, não tá vendo?

Quando olhou na direção apontada pelo garçom, o que viu era uma catedral em miniatura rodeada de uma faixa onde se liam, com as letras e cores do antigo rótulo, O REFIM. No lugar do mendigo, agora estava ele mesmo, tocando uma interminável canção, que, como disco riscado, recomeçava antes de acabar.

CROMOSSOMOS

Meu genótipo não é do tipo gênio,
nem faz tipo.
Apenas é gene do que tipografo.

O fenótipo, então...
feno que masco, atípico, de um mundo em vão,
são condutas tipificadas na lei do acaso.

Sou reunião do que germino e fecundo,
fenícia dos mares da fé no tipo de gênese
que, de mim, desconheço.

Apenas remoo e desço até o nó
dos ge e fe tiches de pó
que reúno pra justificar
minha não genuína e fenomenal
dificuldade de lidar com o mal.

Genoma não mapeado,
Sou mapa de rios que me fazem margem.
Enquanto derreto, do que sou, cromada.

Soma de cruzamentos,
que não fazem cruzada
às fenotípicas encruzilhadas,
Quero ser, cromossou...

Parte fenômeno genético,
meio genômeno fenético,
e doses de criação fonética,
no frenético correr da existência.

QUESTÃO DE AMOR

O que nos faz amar?
O que nos torna capazes de sentir?
Será o mesmo que nos faz ter vontade de doar sem nada em troca querer?
Ou é o querer tudo fazer para quem se quer em troca do bem fazer?

Não tenho as respostas para tanta interrogação sem fim.

Mas, também não acho que as questões foram feitas para serem analisadas, compreendidas, sequer respondidas...

A utilidade que nelas vejo é a de fazer pensar e novas dúvidas criar.

Algo me diz que sei amar,
coisas sem som nem grafia.

Ainda não sei distinguir paixão de amor,
dizem que são coisas distantes,
mas, para mim, são instantes do mesmo ardor.

Talvez não tenha vivido tanto para saber,
se viver é passar dias amando, e não passar pelos dias.

Tenho medo de desperdiçar meu hoje com falsos sentimentos,
mas não quero deixar meus sentidos por temer o amanhã.

Quem sabe o amor não está na ausência de receio,
no seio da dor, em não haver termo ao meio,
mas ternura quando uma fase tiver que terminar?

Há coisas que nos cercam
sem aprisionar,
enquanto a falta de enxergá-las
faz de nós mesmos prisão.

Libertar o coração,
e não achar que o que se perde é em vão...
Até onde é amor, ou ilusão?

Não sei onde deixei minhas chaves!

SE

Se eu tirasse a saia,
e me despisse da pele de mulher,
dos cabelos perfumados de fêmea,
dos quadris com gordura de parideira,

Se deixasse exposto,
arrancado para fora dos peitos feitos para dar leite,
o sangue leitoso das minhas vértebras, que pulsam,
e são capazes de feder ao simples tropeço,
frente ao carro acelerado que atravessa a rua,

Se assim eu me mostrasse, como sou,
falível, podre,
feia e viva por dentro, tal qual todos...

Sei, pode ser, ninguém me notasse,
ou me desviassem,
como deixo de ver muita coisa desagradável
aos olhos, mesmo o que está em mim.

Olhos de gente são viciados,
querem o gosto do transe fácil
que vem da transa ou do trago.

Eu tranço dores que trago comigo
e não quero dividi-las,

mas, procuro quem veja além do que exponho,
sem saber ser diferente, enquanto diferencio
o que me faz ser do que alegra.

SÓ COMPANHIA

Há coisas que não se paga,
apenas se agradece,
e não a quem deu,
mas ao que inspirou a vontade de doar
no mediador de qualquer dádiva.

A voz do próprio silêncio,
a embriaguez da solidão,
o sopro que vem com a música da maresia,
ou a voz simples e verdadeira do sambista.

Não há por que se envergonhar de ser só.
Sou o que ninguém mais pode ser.

Isso não é bom nem mau.
E o que dizer dessa antítese,
se antes é tese o que se diz
da separação entre opostos?

Oponho-me às dicotomias.
O branco traz nele o negro.
E eu trago todas as cores e chegas que cabem no mundo.

LENDA DO MATO

Que mistério há
na lenda popular?

No conto de que quem passa
na figueira cheia de graça,
leva uma coça de mão sem carcaça?

Diz que quem bole com a mulher do compadre
origina rebento que bento não é.
Pra espiar os pecados do que pula a cerca,
o diabo, pra que nenhum mais se perca,
faz homem ser lobo em noite de lua cheia.

Que mistério há na lenda popular?
Na pinga que engana o que o zóio vê,
e é tão barata que chega a ter
mais do que gota na água que é de beber?

Esses causo que contam no mato
é coisa séria, sinhô sabe não?
A água que corre no rio não vem do chão.

Vem do céu, da nuvem, do vapor que sai do suor
das plantas que brotam história que eu sei decor.

Diz que o dotô que entrou na floresta
Não mais voltou, quis ficar.
A natureza não deixa fresta
pra quem não costumava olhar.

Como pode tanta gente presa,
em gaiola de papel e mesa,
não sentir essa paz que escorre das pedras
e refresca toda frieza?

Que mistério há
na lenda popular?

Não sei se é só invenção, essas coisas que ouvi por lá.
mas, se for, é só isso mesmo o que deve ser tudo que há.

O que a gente ainda não sabe é que não precisa crer,
mas tem que guardar num canto pra não esquecer.

CULPA

Decidir que as pessoas não são coisas,
que um bem feito por outra força, além da humana,
não é coisa, mas vida,

que o trabalho não é razão de ser, mas invenção do ser,
que as pessoas não são só o que fazem,
que o que se faz quase sempre não tem sentido

e que a falta de sentido não significa ausência de beleza,
mas a incapacidade de ver beleza tira de tudo o sentido.

Se perguntam o que sou, esperam ouvir minha profissão.
Mas, a reposta que quero dar a essa e qualquer outra questão
é a de que simplesmente sou.

E se não sei por qual motivo um dia alguém decidiu que eu devia estar na Terra,
tampouco um dia baterei no peito, afirmando com orgulho ter alcançado auto-conhecimento.

Admitir que a melhor terapia é a que faz perguntas sem buscar clarão em respostas,
que a escuridão é diferente da cegueira,
e vendar-se para o que tem carne traz luz
a cada um dos milhares de sentidos adormecidos que carregamos
como células ainda não descobertas pela ciência.

Permitir-se tomar um café e escrever maluquices, ao invés de trabalhar,
buscar no ócio uma vocação,
não perseguir fontes de informação,
mas deixá-las brotarem da fertilidade improvável de rochas pontiagudas.

Desejar ser a menina que vê graça no vôo do pombo fugindo ao toque,
Ser livre demais para sentir calma no conforto
e muito humana para não querer um porto.

Sonhar com um amor inexplicável e indolor,
enquanto persigo o risco da dor, caminhando
na beira do penhasco das paixões ilusórias.

Abraçar o perigo,
Assumir que a possibilidade de queda está em tudo,
e a fantasia decepcionada não foge a nada.

O mundo é vários e tão real na aparência...
Ao mesmo tempo em que uma só parte do planeta
é como uma carta de tarô escondendo outras.

Cada um forma o jogo como quer e usa a mágica da aposta
e da espera inquieta pelo destino.

A única escolha de todos é esperar.
E eu só espero não mais ter que me desculpar
para alguém que, como eu, não tem régua
que meça o tamanho da escala real do mapa que traz na mão.

A pessoa que tanto temo, cobro e abomino,
olha-me com reprovação quando estou voltada ao espelho,
um quadrado que foi feito pelos homens para refletir,

e troquei por dinheiro para ter onde me torturar.

ARTEÍSMO

Sábio quem disse que nada se cria.
Minhas idéias são transformação do que
um dia minha mente amou e meu coração entendeu.

Sinto segurança quando falo frases gasosas
que ninguém compreende.
Há coisas que nascem para ser degustadas,
internalizadas, sem a mínima razão ou entendimento.

Talvez tudo tenha surgido assim,
com o simples propósito de ser aceito.
Mas, não quero ser abrigada sem perguntas,
como não quero que isso façam com meu versos.

Se me dizem que leram um texto meu,
depois de dividirem comigo o que sentiram em cada linha,
sem ter isso sentido para o que ardia em mim quando escrevia,
alegro-me.

Percebo contente que sou lida por quem em nada me entende.
Respiro aliviada por ser uma eterna incompreendida,
amada por ser mal interpretada,
e amante de quem me usa pra se auto-interpretar.

Vivo a buscar um texto que se descole da minha alma,
perdendo a forma até para sua fonte no instante seguinte.

Se amanhã eu ler isso e sentir de novo o que agora me invade,
verei em tal feito obra oca.
Por isso, prefiro fechar a boca,
abrir os olhos com força,
deixar-me invadir por sussurros
e sons mudos da natureza.

Quando calo o raciocínio o que tenho é livre e verdadeiro,
do alto da louca fantasia em que imergir me deixo.

A única inspiração que existe é a do ar.
O resto é in piração do leitor.


A ARTE DA DÚVIDA

Por que é tão fácil esquecer?
Como a lua que se deixa espiar sob um véu de nuvens,
a verdade se esconde, querendo ser achada, numa névoa de pensamentos.

Cada gesto e letra que ofereço sobre o mundo
é, de fato, artefato que faço acerca de mim.

Escrevo por não ter certeza.
Acerto quando sou a mira.

E escorro, escrita na arte que crio
a cada mirada pela janela que trago no peito.

Por que as pessoas se esquecem?
Vivem se olhando no espelho e não decoram
nada do que decoram
para disfarçar o que é imperfeito.

Quisera eu poder levar emoldurado o rio onde me vejo refletida.
Na água, pude enxergar me olhando, molhada, e de vista cerrada.

Mas, sei que não é preciso aprisionar a natureza
feita para ser corrente e não, acorrentada.
Basta recordar que ela é de tudo morada.

Sabendo isso, que só sei de mim,
mas soube de anjos e poetas,
passei a me ver numa folha brilhante de planta,
na gota da chuva, em lágrima de gente, no vidro de um prédio,
e até na íris de quem comigo conversou sem palavra.

Escrevo e falo de mim por não saber nada.
E me embaraço por não poder assumir essa impotência
ao retratar o que miro com vista embaçada.

Por que as pessoas esquecem que tudo o que são parte de nada?

Desde sempre, sou solidária ao sólido ato de expor-se em feridas e fraquezas,
mas dentro de um mundo líquido e duro, também criei minhas fortalezas.

Meus textos publicados como fato,
são montes de artigo indefinido.

Eu me defino como um ato momentâneo e não factual.

O que ora rascunho pra me desenhar
foi anotado com a lama do fundo de um rio.

Não demora, essa tinta de leito estará seca pelo vento
que leva a neblina a ocultar a lua.


NOVELA

-Ai!
O grito fez vibrar o vidro fino da pequena e única janela existente na sala.
-Estou sensível hoje. Parece que nunca doeu tanto assim...

A causadora do sofrimento pareceu não se importar com a reclamação.
-Às vezes, a gente sente muito mesmo, mas não pode...
-Aaaaai!- mais um chumaço de pêlos tinha se colado ao papel grudento.

-Escute o que te digo. Se a gente sente demais, eles logo percebem. Acham que a gente vai ser uma cera na vida deles, e pulam fora. Ou se aproveitam de como você é mole para tomar conta de tudo o que você tem.

A outra, deitada sobre uma cama estreita, não quis continuar o papo. Preferiu olhar fixamente para o teto, enquanto se lembrava de como havia agido com cada um de seus ex-namorados.

-Você está namorando?- a pergunta interrompeu o devaneio.
- Não. Eu...eu não dou muita sorte quando o assunto é amor.
- Mas, essas coisas não dependem de sorte não. Se quer um homem que vale a pena, tem que ter é esperteza!
-Como assim?
- Vai por mim, querida. Já tenho um filho, fui casada com um cafajeste...tenho experiência!

"Com um histórico desses, deve ser mesmo uma fonte de sabedoria", falava consigo a moça deitada, fingindo interesse na conversa para disfarçar sua irritação com a ardência que ainda sentia na pele.

-Hoje não perco mais meu tempo. Se, num bar, chega um candango e senta do meu lado pra puxar conversa, vou logo mandando o cara pagar minha bebida. Se o infeliz não tiver grana, nem disposição pra me bancar, já vaza logo. Aí eu não corro o risco de arranjar dor de cabeça. A que eu tenho de ressaca já tá de bom tamanho.

Depois de continuar assim, dividindo sua sabedoria amorosa, a depiladora explodiu numa gargalhada encenada. A cliente ensaiou um sorrisinho para não dar uma de antipática, mas não pôde conter seus pensamentos, que pediam voz.
-Então, você jamais se permitiria gostar de um cara que fosse duro?
-Duro só na cama, meu bem- riu de novo, balançando os peitos avantajados e morenos, que se deixavam espiar por um decote generoso.
- Pois, eu...- tomou coragem a depilada- quero alguém que me ame.

A sádica da cera gargalhou outra vez. Agora, com mais força.
- Você já deve ter dividido muita conta com homem folgado!
Mal sabia ela que as contas tinham sido pagas inteiras, e em tantas vezes, que a autora dos gastos até perdera a conta.

"Mas, o que tem de errado nisso? Eles não tinham grana. Se tivessem, sei que fariam o mesmo por mim...", pensou a moça, que agora se levantava da cama. O problema é que as coisas terminavam antes para ela, e o destino não dava tempo para a tão esperada inversão de papéis, no quesito Arcar com as Despesas.

- Gilda, a Irene já tá aí te esperando. Terminou?- a secretária entrou na sala falando alto, e fazendo a jovem freguesa se apressar na vestimenta das roupas, que ainda grudavam um pouco no corpo.

-Vocês viram a novela das oito ontem? Nossa, gente! A Helena que o Manoel Carlos escolheu desta vez é muito fraquinha! Você acredita que ela disse pra ex do marido que ela podia visitar a casa dos dois quando quisesse? Cê acha que alguém ia engolir uma coisa dessas? Agora, aquela rival vai aparecer na casa da Helena nas horas mais incovenientes: em horário de comida, de faxina...

-Rárárá!- Gilda soltou sua gargalhada inconfundível, e a cliente, que vestia a blusa, fez passar logo a cabeça pela gola para que também pudesse rir.
-Essa Rita é uma comédia. Hora da comida, hora da faxina...Tá achando que novela é vida real!

Gilda, ao contrário, sabia bem separar as coisas. O amor burro pode ser aceito na ficção, mas só os amores fictícios cabem na realidade.

ESGOTADA

Barulho bom esse de água da chuva caindo do céu em dia de folga, pensou enquanto se esparramava pelo lençol amassado. Deixou-se assim, preguiçosamente ouvindo os pingos contra o chão, quando percebeu que tinha goteiras na cabeça. Suas idéias escorriam como água, até se misturarem à corrente sanguínea e, ali, tornavam-se enxurrada.

Levantou-se e, sentada sobre a cama, permaneceu alguns segundos imóvel, tentando destinguir as gotas de dentro das que tilintavam no beiral da janela. Tudo inútil. Decidiu, então, trocar de roupa antes de abrir a porta da sala para ver se o jornaleiro já tinha passado. As primeiras notícias do dia estavam ali, mas não havia ninguém na casa ou no pequeno trecho de rua a sua frente, que pudesse avistá-la segura, sem a intimidade do pijama.

Recolheu o jornal, bateu a porta, dando três voltas com a chave, e desabou sobre o sofá sem pressa. Examinou a primeira página sem desdobrá-la e passou por rostos tristes, paisagens em preto e branco e frases secas, antes de jogar para longe o amontoado de informação.

Rendeu-se, em seguida, à tentação de criar outra realidade. Sim, o que existia só na cabeça dela não deixava de ser uma verdade paralela, materializada como era em rabiscos feitos num caderno sem capa.

"O que mais alguém ler, acontecerá". Foi a primeira coisa que escreveu, e também a última. Logo depois, desistiu de continuar, como vinha fazendo há dias.

Fases de falta de inspiração são comuns e proporcionais ao número de tentativas. E ela era mestre na arte de tentar, para qual talvez se exija mais talento que o necessário ao sucesso.

Porém, desta vez, era diferente. O motivo causador do vazio de palavras não era a ausência de pensamentos, mas o excesso deles.

Por meses a TV não era ligada, e qualquer novidade banal, apenas anunciada pelo caixa da mercearia, ou a faxineira, era terminantemente ignorada. Não queria saber mais de nada. Não precisava de mais uma informação no mar de acontecimentos que a inundava por dentro.

"Desisto! É como se eu passasse os dias insistindo, inutilmente, no plano de fazer o retrato fiel de uma paisagem que muda a cada segundo", conversou de novo com o papel.

Falando assim em silêncio, não pôde deixar de ouvir atravessarem a parede os gritos do casal de vizinhos, que não passava um dia sem brigar. Como se não bastasse, um gato passou sobre o muro dos fundos, chamando a atenção com um miado tristonho e desafinado.

"Nada pára. As pessoas estão todo o tempo falando, fazendo e se mostrando ao mundo, como fazem até os bichos". Abriu mão de vez do antigo ideal de concentração solitária.

De repente, também ela voltava a fazer parte do excesso de realidade. Trrrrim!
- Alô. - ouviu-se a frase ofegante após passos ansiosos ecoarem no assoalho.
- Meu livro foi aceito?

Fora, o sol saía, e o temporal havia cessado.

RECORDAÇÃO

Se alguém houvesse filmado aqueles olhos antes das lágrimas, teria capturado neles o reflexo de palavras. O punhado de letras faiscando naquele olhar tinha saltado com tanta força e delicadeza do papel, que alcançou um canto misterioso da mente que lia. Ou seria, na verdade, a alma única leitora para tamanha beleza?

Quem viu a cena só soube que ele estava mesmo lindo enquanto chorava. E porque nunca escancarasse assim sua sensibilidade, primeiro, seu comportamento causou surpresa.

"O que te deixou triste assim?", perguntou a filha mais nova.
"Isso não é choro de tristeza. É que tanta lembrança tinha que transbordar de algum jeito".

A menina não entendeu, mas percebeu que só estaria perto de compreender quando visse o que guardava o livro aberto sobre o colo do pai.

Na página marcada e um pouco molhada de emoção líquida, liam-se versos de Rubem Alves sobre o cenário e as experiências da infância do autor.

O campo, os pássaros, o rio, as manhãs...Como podiam coisas que a gente tem tão fácil na natureza se tornarem elementos fantásticos de uma hora para outra, com um simples toque de poesia? O sagrado na simplicidade é uma verdade universal, não sugestão do poeta.

Ela começou a ler de novo o texto em voz alta, mas não pôde terminar. Se alguém tivesse filmado estes olhos, poderia ver para sempre escorrerem deles uma água salgada e incontida com tanta doçura.

"O que foi?", dessa vez, o pai perguntou.
"É só minha falta de lembranças transbordando".

ESTÁ EM FALTA

Há presenças com cara de ausência,
e ausências com cara de presença.

Aquelas têm corpos, mas já não carregam almas.
São apenas reservatório do que foram para quem as vê.

Estas já não têm corpos, e trazem almas feitas
da força de sua mensagem para quem as guarda.

Eu vejo e guardo muita gente.

Às vezes tento viver o que lembro,
mas só algumas lembranças vivem.

Recebo presenças de espírito
e invoco vivas ausências.

PARTO

Houve tempo em que meu ideal de paz eram os gestos que evitassem a mínima desavença. Quando era pequena, qualquer brincadeira mais ríspida de um colega da escola já era motivo para lágrimas ou denúncia da agressão aos meus pais.

"Pára de se fazer de vítima!", dizia minha irmã mais velha, nas vezes em que eu reclamava assim de uma briga nossa, ao invés de me defender. Lembro que, quando ela agia dessa forma, dura e desinteressada frente às minhas demonstrações de fraqueza, eu me sentia ainda mais injustiçada. Mas, será que ela não estava com a razão?

Outro dia, enquanto conversava com meus pais à mesa do almoço, senti um desconforto familiar me agulhar o peito. A experiência poderia ser comparada à de uma assadeira antropomorfizada que, consciente da massa de bolo ainda crua e decantada em seu fundo, surpreende-se quando a mistura infla dentro de si.

Naquele instante de conversa, eu recebi a dose de calor necessária através do excesso de zelo das palavras de meu pai e, de repente, um sentimento assado em fogo baixo cresceu e veio à tona. "Não sou mais criança"- disse bruscamente ao meu protetor. Ele, ofendido, retrucou: "Então, pare de agir como se fosse uma".

Fiquei sem resposta. Resolvi não me comportar como nas discussões com minha irmã no passado. Inclusive, desejei a presença dela ali, na forma de voz da consciência, para que eu tivesse sua coragem crítica de dizer o que estava pensando, sem me preocupar com a opinião ou reação alheia.

Mas, agora, eu me encontrava só, frente a uma das pessoas que mais me amaram até hoje na vida e no mundo. Sentia-me menor do que na época em que chorava por qualquer xingamento infantil. E estava assim desabrigada porque havia me deslocado, por vontade própria, até o espaço solitário da ponta de uma corda puxada do outro lado por, quem diria, meu pai.

Após tanto ter desejado, dentro do meu silêncio seguro, ser capaz e livre para alcançar tudo apoiada em nada, foi como se pela primeira vez eu estivesse solta de um cordão umbilical forte. Talvez meu pai, do outro lado da corda, sentisse a mesma dificuldade, enquanto, sem se darem conta, ambos puxassem a linha que os une para o mesmo sentido: o da busca por fazer o melhor.

Essa mão que continua agarrando a corda para o meu bem foi tão imprescindível em dias sem sol e noites sem paz, que agora até me sinto ingrata dizendo, desta vez, não precisar de uma força. Com insegurança e inexperiência de filha, sei que retroalimento uma inércia das velhas posições de comando e dependência. Mas, é preciso seguir.

Não acredito mais que só o sorriso é bom, nem escondo meus olhos numa cortina de lágrimas quando me é posto um conflito. Aliás, passei a achar as brigas muito mais interessantes que a pasmaceira de dizer sim a tudo para não correr o risco de desagradar.

Os embates são bons porque, depois deles, vem a reconciliação, cheia de falhas reconhecidas e declarações de afeto, buscando perdão. A calma perene esconde insatisfações e é avessa à espontaneidade. Onde pouco se fala sobre descontentamentos e discordâncias, pode haver montanhas de mágoas e recalques varridos para debaixo de um tapete luxuoso.

Não me tornei uma chata que quer discutir a relação familiar o tempo todo. Só despertei para o fato de que as pessoas que se amam devem se permitir brigar e também partir. Com o coração partido, partindo e sempre presente, meus pais, estamos ficando velhos, mas ainda não paramos de crescer. Amor confiante é o que me faz ficar forte, não espinafre.

PARA QUEDAS

Às vezes tomar papel e caneta é ato que exige muito,
mais do que a coragem de quem se arrisca pulando de pára-quedas.

Escrever é se lançar no abismo negro e profundo das dores humanas,
sem a certeza de que haverá uma corda e se puxar ou agarrar,
quando o medo da queda for maior que a ânsia por conhecer os próprios limites.

Nunca quis ser limitada, sequer pelo instinto de autoconservação,
manifesto no reflexo de fugir ao tombo.

Mas, minha vida não é o que sou.
Ela criou asas próprias,
como a obra que, de tão perfeita,
passa a existir longe da imagem ou vontade do criador.

Minha alma é refém do que
a cerca sem cercear,
enquanto cativada em cativeiro.

Faço combustão do que finjo entender
e sinto com os olhos como motor
para voar até de onde eu possa despencar só.

Meus versos sou eu em queda livre.