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MICHÊ

Tinha um garoto na minha rua.
E havia tantos outros ali...
esperando cédulas cairem em suas cuecas.

Eu sou como eles, em plena segunda-feira.
Aguardo os mais caros trocados da vida,
e que me troquem de lugar.
Desejo que me queiram e queiram tocar.

Talvez seja gananciosa, pense como quiser.
Apenas veja-me de um modo, para assim me ter.

Por querer, quero tudo e não sei o que quero.
Só sei que da vida e da morte algo nobre espero.

Fora da nobreza, da grande realeza:
Níqueis feitos do aro do círculo que forma a metade de um mundo cortado.

Apertem meu pescoço, mas mantenham-me em gozo.
Sem a cabeça de baixo, ao sabor do ar, em pouso.

Preciso de um troco
para o balanço que faço,

sem jeito e nada sexy,
do mal estar que disfarço.


ARTE REPRIMIDA

Não sei se não o tenho,
ou o tendo não sei usar.
Esse tal tesouro que foi perseguido por Mutantes,
está em tudo e, ao mesmo tempo, nada.

De antigos festivais, talvez sejamos rivais,
adulando velhos ídolos que trocamos de lugar,
para suplantar a falta de noção de onde se está.

Já não há Ditadura,
duro é o dito de que não há mais vilões.
Porque talvez eles nunca tenham existido,
mas apenas se arrastado sobre outras existências.

Sou opressora de mim
e uso um cárcere de carne.
Não consegui sair para ver-me em outros corpos.
A isso, aguardo a morte.

Aluísio Palhano Pedreira Ferreira desapareceu em 1971.
Sindicalista, conheceu Cuba na época do exílio.
Quando soube, desejei que fosse meu parente.
Pois, também trago Ferreira e de heroísmo sou carente.

No fim,
no passado,
no irrecuperável.
No nada minha joia sem uso reluz.

E não se pode dizer seu nome
sem antes empunhar algo que atire.

Vi o show do Rei da Jovem Guarda
com a emoção de um documentário da guerra.
Pra não dizer que não falei das flores,
cantei com lágrimas brotadas da terra.

Acho que sei onde está o bem tão buscado,
liso,
frágil,
raro,
e permeável.

Talvez o aproveite exatamente agora,
em momento do qual já sinto saudade.

Pois, logo ele vai,
sem que tirano o tire do ar que todos respiram.

Sem passaporte ou porte de armas,
sempre solto, alheio a avisos sobre a volta,
o bem valioso
é a liberdade subutilizada.

ANACRÔNICA

A noite seria normal se algo estranho não tivesse, de repente, despencado do quarto andar de uma prédio da avenida Paulista. Tinha sido Ana e a idéia que lhe ocorrera de jogar a televisão pela janela. Gostara a louca do resultado da sua ação descontrolada. Não havia mesmo acertado ninguém, e agora ao menos tinha a paz de ouvir o próprio silêncio e a falta de barulho do apartamento.

Se lhe chegava o burburinho dos passantes parados diante dos fios e peças estraçalhadas do aparelho descartado do alto, ao menos, esse som era diferente da algazarra de buzinas, gritos, risadas e tilintar de copos, tão normais para uma sexta-feira, em pleno happy hour sem sal, ainda que cheio da gordura de porções em mesas de bar.

Enfim, dormiria traquila e escondida no anonimato da falta de conhecimento de todos sobre a autoria daquele atentado à integridade física dos transeuntes da avenida movimentada. E isso sem se sentir culpada. A culpa permanente que tinha experimentava por motivos muito menos reais e mais incompreensíveis.

Quis escrever uma crônica, mas se sentia cronicamente incapaz. Irritava-lhe a convivência mesmo com as personagens televisivas, mas se via, ainda assim, solitária. E, irremediavelmente, seria assim para sempre. Talvez por isso já buscasse se preparar para a data final, tamanha era sua necessidade de controlar o rumo da vida diante do medo do sofrimento, embora soubesse que ele, tal qual a solidão, jamais poderia ser evitado.

Tudo o que sentiu que, naquele momento, deveria comunicar às paredes a voz de um cantor gringo do qual não fizera questão de saber o nome falou por ela na forma de acordes depressivos. Estava entediada, longe de livros que queria ler e sentada sobre fotografias que tanto quis rasgar, mas permaneceria assim. E isso até que tivesse forças para voltar a conviver com algo além da presença insuportável de si mesma.

Por que deveria ter medo de ser decepcionada de novo se nada havia mais desapontador que o fato de estar abraçada a um espelho, bebendo o vinho que brindava com o reflexo das próprias fraquezas? Seu celular vibrou, fazendo mexer cada pelo do corpo arrepiado pela carência. Ou, seria apenas sensação de ausência, de espaços em branco que via em si e em sua consternação diante de tanta palavra solta, tanto abraço impalpável e tanta lamúria indolor?

Quando viu na tela do telefone móvel que o que chegava era um aviso para que colocasse novos créditos, soube a resposta. A comunicação com o mundo havia perdido sentido e Ana perdeu seu resto de razão quando lhe voltou o ímpeto de lançar mais algo através da paisagem da sacada para que se estilhaçasse no solo.

Mas, não jogaria mais nada nem se lançaria à morte ou à vida desconhecida e assassina das ruas.
Apenas acenderia um cigarro e curtiria o suicídio dos sensivelmente covardes, até que o telefone tocasse e alguém lhe convidasse a fugir de sua companhia feita de inércia, sonho e vazio.