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GAROTA DO TEMPO

Meu inconsciente é o mar,
enquanto o que faço porque sei e quero é feito de areia.

Para cada brecha pelas dunas dada, vem preencher uma porção de água.
E às vezes penso que o vento sopra com a clara intenção de me ver, assim como ele, vulnerável e sem formato.

Será que ele sente que gosto de não pensar sobre o melhor agir?
Saberá ele ver que sou mudança de clima, estação indefinida, falta de parâmetros para minha paisagem?

Sim, a natureza tudo sabe.
Eu é que sou a falta de conhecimento em pessoa.
Não conheço os mistérios da vida, nem as pessoas...

Só o que sei é me desmanchar sob o oceano,
espalhando prévias certezas, esperanças de outrora
e uma consciência, em grãos, dispersa.

Minha mente vive banhada,
e sua força é levada
por um tufão de emoções.


PASSO

Morrer é como cair de um degrau
de até dois centímetros de altura.

Você nem bem se vê, já caiu e não viu.
O carro passou, um olho piscou e a rua sequer notou.

Por que? Se é tão pouca a distância por que tanta importância ao fim?
Enquanto olho pra baixo, no olhar tudo embaço e já não tenho equilíbrio.

Se, ao revés, olho para frente, vejo um céu diferente que não é azul nem tranqüilo.
É só o próximo passo, incerto e sem cadarços para amarrar o destino.

Morrer é como cair de um degrau
de até dois centímetros de altura.

Você nem bem se vê, já caiu e não viu.
O carro passou, um olho piscou e a rua sequer notou.

É só o próximo passo, incerto e sem cadarços para amarrar o destino.
Mas, não é sem cagaço que sinto o vazio de todo o caminho...

Tenho frio na descida,
da imensurável escada da vida.




SOCIEDADE ANÔNIMA S.A.

Um homem sem voz e, ao mesmo tempo, com a cabeça cheia de coisas que ele não sabia de onde vinham nem para onde iriam, caso cogitasse fazer alguma coisa útil com elas. Assim era Pedro naquele momento:

- Maldita idéia essa predominante em tudo de que tudo deve ser usado tendo em vista alguma utilidade! – pensou o rapaz, incomodado por estar em postura nada utilitária. Ao menos, ele agora não era proveitoso ao olhar do mercado para qual trabalhava em regime de escravidão de espíritos. Como analista financeiro do Pregão da Bolsa de Valores de São Paulo, Pedro era, no fundo, um artista frustrado e, em nada, avaliado.

Mas, não se dava conta disso porque a luz do seu espírito vivia abafada entre gritos de desespero de investidores interessados em calcular outra espécie mais usual de valores. – Que merda é essa? Será que agora só sei olhar para cotações, números e moedas e não enxergo meus próprios sentidos?- referiu-se si, enquanto encarava as pessoas que lhe rodeavam sem saber o que dizer.

Todos ali compreenderam imediatamente o íntimo do colega, embora ele nem tivesse conseguido balbuciar qualquer coisa. Era como se fossem igualmente incapazes de se fazer entender porque já não se tocavam. E, caso buscassem o mínimo contato verdadeiro consigo mesmos, como agora faziam, o que encontravam era só o vazio da falta de alternativas para sair do novelo em que havia se transformado sua existência.

Mais um dia sem o vício do trago na ilusão da felicidade pré-programada, é o que buscavam aqueles homens e mulheres reunidos numa sala de escritório pequena e escura. O conjunto ainda não havia se dado um nome como as outras associações de viciados e os famosos grupos de auto-ajuda. Apenas buscavam limpeza, sem saber em que consistia sua sujeira.

- Estou ferrado, muito ferrado. Deus do céu, minha vida acabou e eu não sei o que fazer daqui pra frente. Vocês têm alguma corda para que eu me agarre ou de uma vez me enforque? Digam pra mim. Ainda devo sorrir por alguma coisa, ou a desconstrução de tudo o que até hoje foi parte da minha vida já significa que morri, que já era, que ferrou, ferrou tudo?

O homem que, de tão atordoado pelos próprios medos, interrompera a apresentação de Pedro, era um financista falido, que investira milhões em ações de empresas americanas e perdera tudo diante da crise financeira mundial.

- É mesmo impressionante o estado do nosso colega. Ele demonstra caso típico de abstinência diante da falta dos produtos alucinógenos diariamente por ele consumidos durante anos...- pôs-se a falar com olhar perdido e voz misteriosa uma moça que se dirigia a todos caminhando em meio à roda com vestes vulgares. E ela ainda continuou:

- Eu preferi migrar pra farinha porque isso me esgota menos, sabe? Assim pude começar a curtir as festas, conversar com gente interessante, ouvir bom som, e não continuei a ver minha vida passar de trás do balcão do caixa de banco que eu antes ocupava. Se ainda estivesse naquele lugar, esperando sabe-se lá o que vir de não sei onde, estaria muito mais velha e cansada, e talvez, muito mais viciada na ilusão de ser bem sucedida por ter um emprego de merda para comprar à vista coisinhas bem vistas e quistas no começo de cada mês.

Pedro não pôde conter a empolgação que, de repente, subia-lhe do coração à face, tal qual o sangue que lhe pulsava cada vez mais rápido nas veias fazia com que sua cor alternasse de roxo a vermelho. Ficou excitado. Quis se declarar perdidamente apaixonado à primeira mirada por aquela louca cujas palavras desvairadas agora ouvia.

- A gente nunca teve nada, ouviram? A humanidade quis delimitar um céu de alegrias como quem guarda dólares numa caixa e perdeu o direito ao gozo da própria vida porque a deixou desvalorizar entre cédulas de identidade e dinheiro emboloradas. Não vai sobrar um vintém imaginário pra contar história. Você, meu amigo, fique calmo porque já não tinha o que perdeu.

Chegamos a nos sentir seguros com a possibilidade de investir em títulos de uma felicidade duradoura sem nos dar conta de que jamais existirá lastro para isso - disse Pedro, bem mais à vontade dentre os presentes, voltando-se com especial atenção ao especulador que antes reclamara de suas perdas no mercado financeiro.

- Cara, o mundo se resume mesmo a uma boa carreira. Pode ser profissional, de gente, de correria dos meninos que fogem da polícia...Eu prefiro a minha de pó para, ao menos, sorrir sentindo alguma euforia- falou alto a rapariga louca, como se não se importasse com uma só palavra do que até então ouvira.