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SOLILÓQUIO

Ser ou não ser?
Alguém, com razão perguntou,
mas não indago por que sou.

Existir ou desistir?
Viver ou sobreviver?
Gosto mais dessas questões...

Prefiro interrogar o nascer do sol, a cada dia.
A morte shakespeariana não me aflige.
A vida epicurista não me basta.

Hamlet teme a falta de sonhos do mundo dos mortos.
Eu sofro a ausência do sonhar no mundo em que vivo.

Nos jardins do prazer, meu deleite é um sopro de vento,
a balançar-me os sentidos.
Nos castelos da consciência, minha razão é fagulha de brasa,
a iluminar-me os significados.

Mas, para deixar de ser vil ou servil,
teria mesmo que escolher o punhal, ou o convento.

Covarde demais para a primeira opção,
para a segunda, falta-me vocação.

Tenho mania de encontrar razões para respirar,
e achar certa graça na dor.
Não sei se vivo por amor,
ou se amo para me distrair da verdade.

Talvez seja culpa da minha vaidade,
a intenção de forjar ressurreição em palavras.

Sou livre do medo de morrer, não por sorte,
mas por me assustar mais o descanso eterno em vida...

Que se abram feridas,
se for para trazer brilho ao porão onde dormem as almas.

O INVERTEBRADO

"As pessoas não gostam dos extremos". Usou a frase para ensinar as leis do consumo a uma sala cheia de alunos entediados. Num gráfico desenhado na lousa, ele explicava que os consumidores, em geral, para aceitar a troca de um bem, que possuem em pequena quantidade, por outro, exigem receber como compensação uma taxa de oportunidade maior. "É o chamado 'trade-off´'".

Quando se voltou novamente ao quadro, depois de falar durante alguns minutos, sem fixar os olhos nos poucos estudantes que ainda se esforçavam para ouvi-lo, uma bola de papel atingiu-lhe as costas. Ele pôde escutar alguns risos abafados, mas não havia sentido o golpe da folha amassada. Portanto, não saiu da aparente tranqüilidade com que sempre se portava, independentemente da situação.

Enquanto pegava a pasta sobre a mesa, antes de deixar a sala de aula, aproveitou para guardar alguns pedaços de giz no bolso. Eles poderiam fazer falta na aula seguinte. Na pasta, não levava livros, deixava-os em casa para mantê-los a salvo da derrubada de líquidos sobre suas páginas, ou mesmo qualquer arranhão na capa, causado por uma queda resultante da pressa.

Carregava apenas uma folha de papel escrita à mão, com o conteúdo da aula do dia, que era o mesmo do ano passado, com uma ou outra alteração. Chegando à porta do carro, foi abordado por um aluno. "Professor, o Centro Acadêmico está organizando um debate sobre Economia Solidária. O senhor quer participar?".

Em resposta, perguntou quando seria o encontro, já pensando que nada o faria abrir mão dos treinos diários de tênis. "Não posso", falou logo depois de ouvir que a discussão começaria às 19h00, horário em que costumava chegar à quadra do clube próximo da sua casa. O aluno já se afastava, um pouco desapontado com a recusa ao seu convite, feita de forma tão seca e sem justificativa, quando o professor acendeu um cigarro.

No mesmo instante, um pernilongo lhe pousou na testa e tragava seu sangue, à medida que também ele, ia sugando a fumaça para dentro de si. O inseto só parou a refeição, quando a vítima, como era de seu hábito, apagou o cigarro antes do fim, movendo-se apressadamente para entrar no carro.

Porque costumava correr daquela maneira, porém, ele mesmo não saberia explicar. Ainda faltavam horas para o encontro que havia marcado com a mais nova namorada, e ele chegaria ao local combinado em instantes, já que sugerira o bar mais próximo, como forma de poupar tempo e gasolina.

Irritou-se com alguém que buzinava a sua traseira e olhou pelo retrovisor para ver quem era o infeliz. Viu então que sua testa estava inchada, como a de quem tivesse acabado de levar um golpe com taco de baseball. "Mas, quando? Como?", gaguejou palavras sem sentido para si mesmo, tentando encontrar uma possível razão para aquele machucado imenso e, especialmente, para algo que lhe incomodava ainda mais que ter um galo na cabeça, num dia de encontro sexual.

"Como não vi isso antes?", completou uma frase inteligível finalmente, ao mesmo tempo em que arrumava o nó da gravata, tentando desviar o olhar da testa grande e vermelha, refletida no espelho. O Doutor Hector, como gostava de ser chamado, embora ainda não tivesse concluído o Doutorado em Economia, não ficava muito tempo sem olhar o próprio rosto.

Trazia sempre um pequenino e discreto espelho consigo, no bolso do paletó. Achava-se bonito, embora a maior parte das mulheres atraídas por ele sonhasse mesmo com a vida estável que poderia ser proporcionada pelo seu salário de estudioso renomado. Preocupava-se em se vestir de modo elegante e, desse modo, conquistava alguns olhares. Fazia questão de estar sempre com todos os fios de cabelo bem alinhados, e a gola da camisa com os dois lados bem simétricos. Por isso, a mania do espelhinho.

Pensava num modo de esconder a mordida de pernilongo, que ele nem sabia se tratar de uma picada de inseto, e não viu quando o autor do estrago se sentou tranquilamente no banco de passageiro. Depois de um rápido descanso, o bicho pôs-se a voar, batendo contra os vidros, para tentar encontrar novamente a fresta pela qual havia entrado. Nessa busca incansável, colidiu com o retrovisor em que Hector se olhava.

"Meu Deus! Quem é você? O que tá fazendo no meu carro?", gritou, saltando do banco de motorista para depois se esgueirar de costas, sem tirar os olhos do inseto, até alcançar os assentos de trás.

"Quem é você, filho da puta?". O pernilongo continuou a voar em todas as direções, enquanto o professor se abaixou como quem procura um objeto. Quando se reergueu com rapidez, o homem tinha à mão uma raquete de tênis, que segurou do modo como se empunham as armas em situação de combate. "Vem cá, seu invasor maldito!"

Os dois, homem e bicho, começaram então a duelar. O inseto, aparentemente em situação de desvantagem, não tinha mãos fortes para segurar instrumentos de defesa, mas possuía asas, e a agilidade livre por elas proporcionada, aproveitou para escapar dos golpes de Hector, passando por entre as brechas da rede da raquete.

O professor foi ficando mais e mais irritado, porque, pela primeira vez em meses, sentia-se impotente e sem controle sobre os acontecimentos. O mosquito passava, agitado por entre os pequeninos espaços, e nada poderia ser capaz de conter sua ânsia por manter-se vivo. A vida, esse bem precioso, embora pequeno nos seus instintos, consegue tomar mesmo dimensões gigantescas diante de circunstâncias mais ameaçadoras.

Mas, o homem não se dava conta disso. E sequer percebia que sua falta de asas, há tempos, o prendia num espaço onde só cabem os pernilongos.

"Chega! Agora você não me foge!". Inverteu a posição da raquete, e apontou o cabo do objeto na direção do inseto. "Venha, vem logo se for homem". O bicho, sem nada raciocinar que o levasse a temer, veio de encontro ao cilindro duro e, com um só movimento, Hector lançou para longe seu adversário.

O serzinho alado foi então cambaleando no ar e, sentindo as dores da tacada, deixou-se cair, mole, em direção ao chão do carro. Quando os últimos gestos daquelas perninhas finas ainda se faziam observar, entre espasmos do restante do exoesqueleto, um zunido baixo e, ao mesmo tempo, estridente, saiu do tórax do artrópode, tal como soa uma sirene de ambulância, nos ouvidos cansados do acidentado, entre a vida e a morte, a caminho do hospital. De repente, era como se o ambiente todo fosse contagiado pela dor experimentada pelo pernilongo.

Em êxtase e com expressão triunfal, o professor, limpou a estimada raquete, livrando-a de uma pequena mancha vermelha, que deveria ser do seu próprio sangue, até então alojado no abdome da vítima. Sem pensar nisso, nem relacionar a gota sangrenta com o machucado que tinha na testa- até porque ele continuava sem sentir qualquer tipo de dor, causada por aquela agressão- guardou sua arma novamente e voltou para o banco dianteiro do carro.

Ali, de volta ao seu habitual e quase nunca abalável semblante apático, olhou-se novamente no retrovisor. Mirou o espelho por alguns minutos, o tempo necessário para que sua calmaria se desconstruísse aos poucos, até se tornar assombro. A picada na testa tinha crescido e se transformado em algo ainda mais terrível e assustador. Hector agora tinha, no topo da cabeça, uma haste flácida, pontiaguda e oca, como se fosse agulha, da qual escorria, não sangue, mas um líquido venenoso, desses que só injetam os insetos.

A LÍNGUA DAS BARATAS

Devia ter uns sete anos de idade quando aconteceu. Na época, eu já sabia que não gostava muito de falar e passava horas brincando sozinha, ou observando o que me rodeava. O comportamento peculiar para uma criança gerou entre eu e mim uma relação de estranhamento, ao mesmo tempo em que me empurrou para perto das palavras.

Sempre me senti tão íntima delas. Talvez porque fôssemos, de certa forma, parecidas. Ambas tínhamos necessidade de tudo explicar e capacidade de dar ao mundo diferentes significados. Éramos igualmente complexas e falhas.

Essas coisas, muito antes, eu já sentia, mas não sabia. Fui mesmo começar a compreender naquela data. Era um dia de semana como outro qualquer, em que se deve acordar cedo para ir à escola. Mas, dessa vez, quando lá cheguei não encontrei Dona Maria, com a lista de presença nas mãos e os óculos pequenos sobre o nariz rígido. Ela tinha ficado doente e, em seu lugar, mandaram uma professora substituta: Cláudia, muito mais jovem e menos assustadora que a titular do cargo.

Quando já abria o caderno e me preparava para responder à consulta diária da tabuada, tia Cláudia disse que naquele dia a aula seria diferente. "Vamos fazer redação", disse ela, "e o tema é "a barata". Não dei muita importância para essa mudança radical na rotina de início, e tampouco havia me agradado o assunto sugerido. Mas, quando pousei o lápis na primeira linha do caderno brochura e me dei conta da liberdade que eu passaria a ter, deixando minhas fantasias mais silenciosas escorrerem para a vida real da página, foi como se uma enxurrada de ideias de repente invadisse um espaço do meu interior até então vazio.

A colega do lado parecia preocupada: "Não tem muita coisa para escrever sobre baratas". Eu discordei em silêncio porque, na história que eu acabava de criar, as baratas eram muito interessantes. Tanto, que a personagem principal, depois de passar anos sem fazer um só barulho, resolvia, do nada, falar comigo. Eu e a barata protagonista nos tornávamos grandes amigas na narrativa e, depois, ela me levava para conhecer o mundo das baratas, cuja entrada era um buraquinho discreto na parede da sala.

"Mas, baratas não falam", incomodou-se de novo a vizinha de carteira, quando leu minha redação. O texto dela era sobre um inseto que seu pai havia matado na noite anterior depois de ouvir os gritos de medo da filha, ao se deparar com o bicho na cozinha. Na hora, confesso que, pela primeira vez, tive orgulho de ser quem era. Eu, assim como Cláudia, achei o que escrevi muito mais divertido e instigante. Foi quando entendi que as baratas não me amedrontavam, e as letras podiam transformá-las nos seres mais nojentos ou magníficos que se pudesse imaginar. As palavras, então, não serviam só para dar nome às coisas!

Assim teve início o meu relacionamento com a língua. Para me manter o máximo de tempo perto da minha mais importante companheira, decidi ser jornalista. Depois de dois anos de trabalho, já não sei se fiz boa escolha. Os eventos e prazos para a finalização de pautas foram se passando, e eu desaprendi em parte a arte de brincar com os sentidos das palavras.

Ou, pode ser que eu tenha é perdido a coragem de jogar com os meus próprios sentidos. Piso sobre as baratas que encontro por aí para me sentir destemida, mas a verdade é que receio olhar para os olhos desses bichos. Eu e a língua precisamos de profundidade para existir. E estamos cansadas de ser úteis e usadas.

FOTOGRAFIA

Ouvi certa vez que entender as coisas pelo seu contrário é como fotografar a alma...

Tive vontade de saber se alguma vez já fui capaz de realizar tal feito, ou se, para isso, antes fosse necessário que eu me despisse de todas as vestes e valores com que tenho me apresentado a cada pose frente a um flash.

Olhei fundo e descobri que me cobria com conceitos sobre o que julgava justo e correto para garantir minha conservação e buscar defesa de eventuais intempéries.

Fui sim medrosa, não firme ou fiel àquilo que dentro carrego.

O que trago além do corpo não cabe num porta-retratos.
E, assim disperso, meu conteúdo mais rico não se deixa retratar.

Quando sou incapaz de vê-lo, não retrato erros da superfície.

Como será o meu avesso e também o dos outros?
Quem poderá um dia criar máquina capaz
de refletir o que o sol ilumina, sem queimar?

Minha verdadeira face queimou em várias fotografias
e agora me debato pra sair das molduras na parede em que me pendurei.

Meu filme acabou.

É preciso trocar os negativos
para registrar a vida
e se deixar por ela pintar.