Gallery


MIRADA

Num deserto de idéias sobre mim,
caminhei até todos os porquês evaporarem com meu suor.
Não sei dizer o que do arredor é miragem: eu mesma, o tempo seco, ou o oásis.

Ficaram para trás os passos que trilhei com uma ou outra caravana,

quando resolvi deixar a busca pelo intocável para descansar sob uma solidão de folhas largas.
De repente, vi brilhar no horizonte a luz de uma fonte transbordando novos sentidos.

Então, sem titubear, traguei o calor, embebedei-me de toda a areia e redescobri antigas forças para apertar passos rumo a algo que já vinha fazendo o coração apertado.

Corri com sede em direção a um paraíso que a visão me prometia,
e quanto mais cheguei perto, mais notei que o agora menos distante não era tal qual eu antes o vira...
A esfera de água havia se tornado esfinge, ou assim se fingia.

Quis recuar, mas não pude, tamanha era a provocação daquele enigma escultural.
Continei buscando as cercanias do objeto desejado, com a estranha impressão de que, a cada passo perto de tocá-lo, mais prestes do nada estaria.

As miragens são assim: lindas, instigantes, capazes de conquistar e, ao mesmo tempo, estremecer.
Fosse diferente a luz do cair da tarde, e talvez outra impressão daquela doce imagem criaria.
Mas, agora, fazia frio na vastidão do meu coração arenoso, e eu estava porosa e permeada por ventos de todas as direções e temperaturas.

O que queria de mim aquela miragem a me mirar?
Se eu fosse boa de mira, atiraria no centro do peito daquele tesouro indecifrável uma flecha de amor narcotizante.
Mas, meus sentimentos são bumerangues e levam com seu peso o desejo de voltar...
Talvez assim sejam porque não sabem se desapegar do calor de onde brotaram.

Tanta ardência tem seus riscos!


E se minhas flechas fossem lançadas, mas em nada resvalessem porque o que miro e quero amar é somente quimera?

Não sei dizer a senha para entrar na minha própria esfinge.
E tampouco sei como me livrar de visões que recordam o que nunca avistei.
A indecisão não termina onde acaba meu distanciamento da doce ilusão de óptica por que me apaixonei.

Ela apenas ali começa porque perdura o medo de tocar o esperado,
e continua a presença do receio em conhecer o idealizado.

Tenho sobre a mão, por onde escorre areia, sã e segura somente uma dúvida.

Entre a chance de ter uma ilusão desfeita e o concreto esfacelamento de qualquer fagulha de ilusão,

permaneço estática e me percebo uma combinação de códigos desconexos.


DESENCONTRO

Tive um encontro que para minha companhia deve ter sido programa de índio.
Programa de índio, no sentido que lhe atribui o consenso geral.
Para mim, foi programa de rico, daquelas reuniões em que se pede licença para sorrir e também se sentar.

Sair com um índio deve ser interessante...imagino um cenário de música, fogueira, noite ao ar livre, corpos nus, bebida farta e liberdade...
Mas, sou uma pessoa distante da ingenuidade nativa do homem.

Sou pudibunda (descobri essa palavra ontem, em conversa com colegas de trabalho que riam do som estranho que tem esse símbolo pouco usado para indicar o ser detentor de pureza).
É mesmo uma bunda ser assim pudica e vestida em preconceitos contra mim mesma.

Quisera poder rir e chorar frente a qualquer pessoa que me está próxima.
Mas, parece que é até pecado ser eu, enquanto ainda não bebi alguns goles de qualquer coisa alcóolica.

Minha insegurança só não é maior que meu orgulho. Não dou brecha para o mínimo toque, mas fico brochada se não me tentam tocar.

O próximo encontro romântico terei com Vinícius de Moraes.
É mais fácil e indolor a paixão por alguém preso na eternidade da morte e da arte deixada.

Um amigo me disse que leu Vinícius e se apaixonou pela pomba que, por coincidência, passou naquele instante, em vôo calmo pela janela.

Até agora só percebi próximo à minha sacada o cantar de pneumáticos.
Fecho, então, a janela para não correr o risco de ouvir o mínimo ruído de asas.


SÓ METAFÓRICA

- Cara, hoje eu bem que podia morrer para não ter que viver com essa dor de cabeça...
- Eu também poderia morrer hoje e partiria dessa para outra muito feliz.

Às vezes ajo como se o amanhã não existisse.
Ligo para pessoas com quem há tempos não falava. Tento fazer as pazes com alguns, arranjo confusão com outros. E tudo perde a emoção quando volto a abrir os olhos.

Hoje é daqueles dias que, por querer fazer tudo o que nunca fiz e viver toda a felicidade possível num único segundo, acabo me prendendo a uma eternidade de tédio.
Não sei por onde começar a aproveitar este tempo livre e deixo a tarde passar pensando no bem estar que é estar bem e sem compromissos.

Toco o violão de mais de dez anos desafinado e cheio de pó, e as notas que saem são tristes e desritimadas.
O instrumento ainda não deu liberdade para a canção mais pura, e meu corpo também não se deixou tocar pelas boas sensações que vêm de fora.

Queria que todos os pensamentos e a sensibilidade do mundo coubessem numa única palavra...
- Meta fora essa metáfora! Digo ao espírito escritor solto pelos ares cujos textos às vezes psicografo.

Mas, algumas coisas tanto querem sair, que explodem antes de achar espaço por onde escapar.
Um pouco implodida por dentro, vivo um daqueles dias utilíssimos em toda a sua inutilidade.
A maior representação da contradição humana é uma tarde como essa, vazia e de céu indeciso.

Mato, assim, o tempo
num atual tempo que convida a morrer,
mas não mata porque ainda não pode fechar os olhos em paz.




PÉ DE VIDA

Não plantei uma árvore,
não escrevi um livro,
nem tive um filho.

Escrevi numa árvore,
tive livros,
e plantei a chance de ter filhos.

Esse último plano, enterrei no plano sem o cultivar.
Deixo ao bel prazer do clima tal semente vingar.
A planta que fiz do futuro pode florescer ou secar.

Amazonino quis abraçar um jacarandá para compensar o rio que poluiu,
mas esqueceu-se de perceber que uma floresta toda o abraçava.
Pés de terra deram com a bunda de Severino na falta de chuva.
E Dadá tem na cabeça cabelos e idéias que só lembram as raízes da caatinga.

Quantos braços de rios circundam estes vales!
E ainda há os que se banham em lágrimas sem mais acender velas por temer trovões.

Trago na planta do pé a ligação com minha terra.
Mas, o pé de manga mangou do meu riso e minguou, sumindo no passado.
Então, vi-me e vim só entre palmadas das palmeiras.

Tive uma árvore,
Escrevi um filho,
e plantei um livro...

Não sei se seu fruto quer ser semente ou ser mentira.
Só vejo que idéias são pólem e me escapolem.





AUTOFALANTE

Armando era anarquista e o mais politizado da turma.
Acordou cedo para o trabalho aonde foi de carro e de onde voltou xingando os que como ele dirigiam.

-Seu puto, mal-educado! Não vê que não é culpa minha se esta merda não anda?

E de quem era a culpa, se não era de Armando, nem do homem armado que, atrás, buzinava?
O grande culpado é o agressor que não existe.
Trata-se do monstro que vive escondido entre pilhas de documentos, fichas, registros de nomes e moedas não registradas.

Os que mais o alimentam sequer sabem da sua existência.
Não enxergam sua juba quando entram no ônibus lotado,
nem escutam seu rugido abafado pelo barulho da rotina quando andam maltrapilhos pelas ruas sujas.

Armando sabe bem disso e tem consciência do rastro da fera presente no ranso de ser para ela ração.
Sem mais acreditar na mudança da última palavra da frase anterior de c cedilha para z, nosso anacro anarquista arqueou-se.

Mudou-se para um canto isolado das circunstâncias.
Passou a andar de bicicleta, largou o emprego e hoje vive ajudado por amigos e sustentado pela venda de livros comunistas antigos.

O altivo autista Armando, altruísta em espírito e autoritário em idéias, preferiu criar um espaço elevado e só dentro de outro do qual é inquilino.

Onde estará o fim dessa dívida que temos pelo que pagamos e não usamos?
Onde posso ajuda procurar se, quando eu reclamar tente, quem me atende é parte do que vive a me roubar?
Numa busca cansada por fazer meu grito chegar a algum lugar, sigo atrás de um autofalante quando o som sairia mais alto, de uma caixa torácica com cabos ligados a outras cordas vocais.

Armando já nem se fazia tais perguntas quando morreu agarrado a sua teoria política distante do governo e desgovernada.


PIADA

Joãozinho decidiu escrever qualquer coisa que não tivesse relação com a aula enquanto o professor falava.

Antes achava que só conseguiria soltar sua voz interna quando fora tudo fosse silêncio,

mas a mente é o próprio universo em dimensões e, com todo o seu exagero que ultrapassa o real, também é capaz de caber na mínima fresta imposta pela sorte.

O menino, então, adaptou sua imaginação à falta de ter com que se adaptar. E viu que não precisava de tempo livre, nem inspiração planejada e repensada com critérios metodologicamente implantados pela diretora.

Num papelzinho, desenhou uma criança de ponta cabeça.

Traçou, no vazio, o esboço de um espaço fora da linha que, aos poucos, adquiriu o contorno de dedos.
Focou atenção na ausência, no que estava livre de qualquer sugestão de forma.
Fez primeiro um pé, voltado para o céu, pisando nuvens.
Depois, veio o corpo deformado e caricatural.
O tronco saiu arrotado, nada arrojado, como as coisas que se expressam sem querer.
Enfim, surgiu a cabeça, grande e iluminada pelo vazio de cores, preenchido por todos os espectros de luz contidos no branco da folha.

Era, sem dúvida o desenho mais estranho que alguém já tinha visto.
E Joãozinho teve orgulho da sua apresentação infantil no espaço.
Pela primeira vez, ele sentia um estranho alívio por ter produzido o inesperado.