"As pessoas não gostam dos extremos". Usou a frase para ensinar as leis do consumo a uma sala cheia de alunos entediados. Num gráfico desenhado na lousa, ele explicava que os consumidores, em geral, para aceitar a troca de um bem, que possuem em pequena quantidade, por outro, exigem receber como compensação uma taxa de oportunidade maior. "É o chamado 'trade-off´'".
Quando se voltou novamente ao quadro, depois de falar durante alguns minutos, sem fixar os olhos nos poucos estudantes que ainda se esforçavam para ouvi-lo, uma bola de papel atingiu-lhe as costas. Ele pôde escutar alguns risos abafados, mas não havia sentido o golpe da folha amassada. Portanto, não saiu da aparente tranqüilidade com que sempre se portava, independentemente da situação.
Enquanto pegava a pasta sobre a mesa, antes de deixar a sala de aula, aproveitou para guardar alguns pedaços de giz no bolso. Eles poderiam fazer falta na aula seguinte. Na pasta, não levava livros, deixava-os em casa para mantê-los a salvo da derrubada de líquidos sobre suas páginas, ou mesmo qualquer arranhão na capa, causado por uma queda resultante da pressa.
Carregava apenas uma folha de papel escrita à mão, com o conteúdo da aula do dia, que era o mesmo do ano passado, com uma ou outra alteração. Chegando à porta do carro, foi abordado por um aluno. "Professor, o Centro Acadêmico está organizando um debate sobre Economia Solidária. O senhor quer participar?".
Em resposta, perguntou quando seria o encontro, já pensando que nada o faria abrir mão dos treinos diários de tênis. "Não posso", falou logo depois de ouvir que a discussão começaria às 19h00, horário em que costumava chegar à quadra do clube próximo da sua casa. O aluno já se afastava, um pouco desapontado com a recusa ao seu convite, feita de forma tão seca e sem justificativa, quando o professor acendeu um cigarro.
No mesmo instante, um pernilongo lhe pousou na testa e tragava seu sangue, à medida que também ele, ia sugando a fumaça para dentro de si. O inseto só parou a refeição, quando a vítima, como era de seu hábito, apagou o cigarro antes do fim, movendo-se apressadamente para entrar no carro.
Porque costumava correr daquela maneira, porém, ele mesmo não saberia explicar. Ainda faltavam horas para o encontro que havia marcado com a mais nova namorada, e ele chegaria ao local combinado em instantes, já que sugerira o bar mais próximo, como forma de poupar tempo e gasolina.
Irritou-se com alguém que buzinava a sua traseira e olhou pelo retrovisor para ver quem era o infeliz. Viu então que sua testa estava inchada, como a de quem tivesse acabado de levar um golpe com taco de baseball. "Mas, quando? Como?", gaguejou palavras sem sentido para si mesmo, tentando encontrar uma possível razão para aquele machucado imenso e, especialmente, para algo que lhe incomodava ainda mais que ter um galo na cabeça, num dia de encontro sexual.
"Como não vi isso antes?", completou uma frase inteligível finalmente, ao mesmo tempo em que arrumava o nó da gravata, tentando desviar o olhar da testa grande e vermelha, refletida no espelho. O Doutor Hector, como gostava de ser chamado, embora ainda não tivesse concluído o Doutorado em Economia, não ficava muito tempo sem olhar o próprio rosto.
Trazia sempre um pequenino e discreto espelho consigo, no bolso do paletó. Achava-se bonito, embora a maior parte das mulheres atraídas por ele sonhasse mesmo com a vida estável que poderia ser proporcionada pelo seu salário de estudioso renomado. Preocupava-se em se vestir de modo elegante e, desse modo, conquistava alguns olhares. Fazia questão de estar sempre com todos os fios de cabelo bem alinhados, e a gola da camisa com os dois lados bem simétricos. Por isso, a mania do espelhinho.
Pensava num modo de esconder a mordida de pernilongo, que ele nem sabia se tratar de uma picada de inseto, e não viu quando o autor do estrago se sentou tranquilamente no banco de passageiro. Depois de um rápido descanso, o bicho pôs-se a voar, batendo contra os vidros, para tentar encontrar novamente a fresta pela qual havia entrado. Nessa busca incansável, colidiu com o retrovisor em que Hector se olhava.
"Meu Deus! Quem é você? O que tá fazendo no meu carro?", gritou, saltando do banco de motorista para depois se esgueirar de costas, sem tirar os olhos do inseto, até alcançar os assentos de trás.
"Quem é você, filho da puta?". O pernilongo continuou a voar em todas as direções, enquanto o professor se abaixou como quem procura um objeto. Quando se reergueu com rapidez, o homem tinha à mão uma raquete de tênis, que segurou do modo como se empunham as armas em situação de combate. "Vem cá, seu invasor maldito!"
Os dois, homem e bicho, começaram então a duelar. O inseto, aparentemente em situação de desvantagem, não tinha mãos fortes para segurar instrumentos de defesa, mas possuía asas, e a agilidade livre por elas proporcionada, aproveitou para escapar dos golpes de Hector, passando por entre as brechas da rede da raquete.
O professor foi ficando mais e mais irritado, porque, pela primeira vez em meses, sentia-se impotente e sem controle sobre os acontecimentos. O mosquito passava, agitado por entre os pequeninos espaços, e nada poderia ser capaz de conter sua ânsia por manter-se vivo. A vida, esse bem precioso, embora pequeno nos seus instintos, consegue tomar mesmo dimensões gigantescas diante de circunstâncias mais ameaçadoras.
Mas, o homem não se dava conta disso. E sequer percebia que sua falta de asas, há tempos, o prendia num espaço onde só cabem os pernilongos.
"Chega! Agora você não me foge!". Inverteu a posição da raquete, e apontou o cabo do objeto na direção do inseto. "Venha, vem logo se for homem". O bicho, sem nada raciocinar que o levasse a temer, veio de encontro ao cilindro duro e, com um só movimento, Hector lançou para longe seu adversário.
O serzinho alado foi então cambaleando no ar e, sentindo as dores da tacada, deixou-se cair, mole, em direção ao chão do carro. Quando os últimos gestos daquelas perninhas finas ainda se faziam observar, entre espasmos do restante do exoesqueleto, um zunido baixo e, ao mesmo tempo, estridente, saiu do tórax do artrópode, tal como soa uma sirene de ambulância, nos ouvidos cansados do acidentado, entre a vida e a morte, a caminho do hospital. De repente, era como se o ambiente todo fosse contagiado pela dor experimentada pelo pernilongo.
Em êxtase e com expressão triunfal, o professor, limpou a estimada raquete, livrando-a de uma pequena mancha vermelha, que deveria ser do seu próprio sangue, até então alojado no abdome da vítima. Sem pensar nisso, nem relacionar a gota sangrenta com o machucado que tinha na testa- até porque ele continuava sem sentir qualquer tipo de dor, causada por aquela agressão- guardou sua arma novamente e voltou para o banco dianteiro do carro.
Ali, de volta ao seu habitual e quase nunca abalável semblante apático, olhou-se novamente no retrovisor. Mirou o espelho por alguns minutos, o tempo necessário para que sua calmaria se desconstruísse aos poucos, até se tornar assombro. A picada na testa tinha crescido e se transformado em algo ainda mais terrível e assustador. Hector agora tinha, no topo da cabeça, uma haste flácida, pontiaguda e oca, como se fosse agulha, da qual escorria, não sangue, mas um líquido venenoso, desses que só injetam os insetos.
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1 comentários:
Cada dia um texto novo. Produtividade máxima hein.
Esse do pernilongo foi o que mais me prendeu a atenção. Mas e o final??
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