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ESGOTADA

Barulho bom esse de água da chuva caindo do céu em dia de folga, pensou enquanto se esparramava pelo lençol amassado. Deixou-se assim, preguiçosamente ouvindo os pingos contra o chão, quando percebeu que tinha goteiras na cabeça. Suas idéias escorriam como água, até se misturarem à corrente sanguínea e, ali, tornavam-se enxurrada.

Levantou-se e, sentada sobre a cama, permaneceu alguns segundos imóvel, tentando destinguir as gotas de dentro das que tilintavam no beiral da janela. Tudo inútil. Decidiu, então, trocar de roupa antes de abrir a porta da sala para ver se o jornaleiro já tinha passado. As primeiras notícias do dia estavam ali, mas não havia ninguém na casa ou no pequeno trecho de rua a sua frente, que pudesse avistá-la segura, sem a intimidade do pijama.

Recolheu o jornal, bateu a porta, dando três voltas com a chave, e desabou sobre o sofá sem pressa. Examinou a primeira página sem desdobrá-la e passou por rostos tristes, paisagens em preto e branco e frases secas, antes de jogar para longe o amontoado de informação.

Rendeu-se, em seguida, à tentação de criar outra realidade. Sim, o que existia só na cabeça dela não deixava de ser uma verdade paralela, materializada como era em rabiscos feitos num caderno sem capa.

"O que mais alguém ler, acontecerá". Foi a primeira coisa que escreveu, e também a última. Logo depois, desistiu de continuar, como vinha fazendo há dias.

Fases de falta de inspiração são comuns e proporcionais ao número de tentativas. E ela era mestre na arte de tentar, para qual talvez se exija mais talento que o necessário ao sucesso.

Porém, desta vez, era diferente. O motivo causador do vazio de palavras não era a ausência de pensamentos, mas o excesso deles.

Por meses a TV não era ligada, e qualquer novidade banal, apenas anunciada pelo caixa da mercearia, ou a faxineira, era terminantemente ignorada. Não queria saber mais de nada. Não precisava de mais uma informação no mar de acontecimentos que a inundava por dentro.

"Desisto! É como se eu passasse os dias insistindo, inutilmente, no plano de fazer o retrato fiel de uma paisagem que muda a cada segundo", conversou de novo com o papel.

Falando assim em silêncio, não pôde deixar de ouvir atravessarem a parede os gritos do casal de vizinhos, que não passava um dia sem brigar. Como se não bastasse, um gato passou sobre o muro dos fundos, chamando a atenção com um miado tristonho e desafinado.

"Nada pára. As pessoas estão todo o tempo falando, fazendo e se mostrando ao mundo, como fazem até os bichos". Abriu mão de vez do antigo ideal de concentração solitária.

De repente, também ela voltava a fazer parte do excesso de realidade. Trrrrim!
- Alô. - ouviu-se a frase ofegante após passos ansiosos ecoarem no assoalho.
- Meu livro foi aceito?

Fora, o sol saía, e o temporal havia cessado.

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