Tenho saudade dos meus primeiros verões. E não só porque o nome da estação antes guardasse palavras mágicas, como praia, concha, onda e castelo de areia. Fazem falta as viagens ao litoral em família. Mas, o que realmente parece ter mudado não é o costume de freqüentar cidades banhadas pelo mar em tempo de calor, e sim, o próprio significado dos lugares e das fases do ano.
Embora eu fosse jovem demais nessa época em que as coisas eram diferentes, tomo as lembranças de meus pais por minhas, para explicar como, numa das minhas primeiras férias de dezembro, inventei um neologismo como forma de descrever a sensação de provar um picolé.
“Pito d’água!”, falei alto entre uma lambida e outra. Explodiram em risos a minha volta e, como eu seria incapaz de explicar as razões que me haviam levado a criar tal palavra, os adultos logo trataram de fazer as devidas relações lógicas para justificar o ocorrido. Como até então, para mim, pirulito era “pito”, obviamente eu teria entendido, naquele momento, que o pedaço de gelo que derretia espetado no palito de madeira só poderia ser mesmo um “pirulito de água”.
Para a família, talvez o episódio seja comentado até hoje com orgulho, por ter revelado a inteligência infantil de uma menina de cinco anos, em sua capacidade de fazer conexões entre os signos e seus sentidos, ainda que de maneira confusa e desajeitada. Mas, quando ouço esse tipo de relato e me vislumbro criança, rodeada por objetos e interrogações, vejo que a graça dessas passagens está, na verdade, no seu poder de ilustrar a riqueza das mentes que gozam a liberdade do vazio de conceitos.
Assim são as cabeças das crianças e também era a minha no dia em que conheci aquela delícia gelada e sem nome. Faço uma reconstituição forjada em criatividade, e me enxergo percebendo, na temperatura da gota do sorvete que escorria pelas minhas mãos pequeninas, sua passagem do estado sólido ao líquido. Naquele instante, a sensação térmica, ao invés de tátil, devia ser visual. Pode ser que tivesse cor de gelo colorido se dissolvendo...
Devaneio um pouco mais, e sinto o gosto do suco de uva congelado na boca minúscula, captando nele a impressão de ingerir pirulitos roxos mergulhados na água fria dos banhos de inverno. Paladar e tato eram uma única coisa, e os dois se misturavam à visão da minha imaginação sobre aquele conjunto de percepções inusitadas, em toda sua indefinição.
Da inocência que me incentivava a degustar experiências, hoje resta pouco. Mesmo assim, passados 20 anos, ainda tento me vasculhar para resgatar a infante engenhosa que fui entre valores morais, retalhos de teorias científicas, dados empíricos sobre a realidade, pré-julgamentos e convicções. Na última das raras ocasiões em que consegui tal feito, o realizei por necessidade. No exercício da profissão de jornalista, eu deveria descrever um assentamento da reforma agrária do interior paulista, como passo inicial para a redação de um livro-reportagem que contasse a história do lugar.
Voltei da vila de trabalhadores trazendo nos olhos o brilho das coisas que eu tinha visto, mas me senti incapaz de transferir toda essa luz ao papel. Como um carro sem combustível, empaquei frente às histórias do campo que havia escutado, deixando as emoções vividas durante a conversa com os assentados se soterrarem numa avalanche de cobranças profissionais.
Não enxergava modo de escrever minhas impressões mais sinceras, enquanto, a cada segundo, fazia questão de me alertar para o fato de que todo acontecimento relevante é informação, e as pessoas são, mais do que humanos, entrevistados. E eu mesma? O que devia ser? Um narrador sem alma? Via-me mais como o pintor de um quadro vivo, sem inspiração. Minha habilidade para a descrição só começou a despontar, quando resolvi entrar na tela, lambuzando-me com pirulitos de água e uma aquarela de letras.
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