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CULPA

Decidir que as pessoas não são coisas,
que um bem feito por outra força, além da humana,
não é coisa, mas vida,

que o trabalho não é razão de ser, mas invenção do ser,
que as pessoas não são só o que fazem,
que o que se faz quase sempre não tem sentido

e que a falta de sentido não significa ausência de beleza,
mas a incapacidade de ver beleza tira de tudo o sentido.

Se perguntam o que sou, esperam ouvir minha profissão.
Mas, a reposta que quero dar a essa e qualquer outra questão
é a de que simplesmente sou.

E se não sei por qual motivo um dia alguém decidiu que eu devia estar na Terra,
tampouco um dia baterei no peito, afirmando com orgulho ter alcançado auto-conhecimento.

Admitir que a melhor terapia é a que faz perguntas sem buscar clarão em respostas,
que a escuridão é diferente da cegueira,
e vendar-se para o que tem carne traz luz
a cada um dos milhares de sentidos adormecidos que carregamos
como células ainda não descobertas pela ciência.

Permitir-se tomar um café e escrever maluquices, ao invés de trabalhar,
buscar no ócio uma vocação,
não perseguir fontes de informação,
mas deixá-las brotarem da fertilidade improvável de rochas pontiagudas.

Desejar ser a menina que vê graça no vôo do pombo fugindo ao toque,
Ser livre demais para sentir calma no conforto
e muito humana para não querer um porto.

Sonhar com um amor inexplicável e indolor,
enquanto persigo o risco da dor, caminhando
na beira do penhasco das paixões ilusórias.

Abraçar o perigo,
Assumir que a possibilidade de queda está em tudo,
e a fantasia decepcionada não foge a nada.

O mundo é vários e tão real na aparência...
Ao mesmo tempo em que uma só parte do planeta
é como uma carta de tarô escondendo outras.

Cada um forma o jogo como quer e usa a mágica da aposta
e da espera inquieta pelo destino.

A única escolha de todos é esperar.
E eu só espero não mais ter que me desculpar
para alguém que, como eu, não tem régua
que meça o tamanho da escala real do mapa que traz na mão.

A pessoa que tanto temo, cobro e abomino,
olha-me com reprovação quando estou voltada ao espelho,
um quadrado que foi feito pelos homens para refletir,

e troquei por dinheiro para ter onde me torturar.

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