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NOVELA

-Ai!
O grito fez vibrar o vidro fino da pequena e única janela existente na sala.
-Estou sensível hoje. Parece que nunca doeu tanto assim...

A causadora do sofrimento pareceu não se importar com a reclamação.
-Às vezes, a gente sente muito mesmo, mas não pode...
-Aaaaai!- mais um chumaço de pêlos tinha se colado ao papel grudento.

-Escute o que te digo. Se a gente sente demais, eles logo percebem. Acham que a gente vai ser uma cera na vida deles, e pulam fora. Ou se aproveitam de como você é mole para tomar conta de tudo o que você tem.

A outra, deitada sobre uma cama estreita, não quis continuar o papo. Preferiu olhar fixamente para o teto, enquanto se lembrava de como havia agido com cada um de seus ex-namorados.

-Você está namorando?- a pergunta interrompeu o devaneio.
- Não. Eu...eu não dou muita sorte quando o assunto é amor.
- Mas, essas coisas não dependem de sorte não. Se quer um homem que vale a pena, tem que ter é esperteza!
-Como assim?
- Vai por mim, querida. Já tenho um filho, fui casada com um cafajeste...tenho experiência!

"Com um histórico desses, deve ser mesmo uma fonte de sabedoria", falava consigo a moça deitada, fingindo interesse na conversa para disfarçar sua irritação com a ardência que ainda sentia na pele.

-Hoje não perco mais meu tempo. Se, num bar, chega um candango e senta do meu lado pra puxar conversa, vou logo mandando o cara pagar minha bebida. Se o infeliz não tiver grana, nem disposição pra me bancar, já vaza logo. Aí eu não corro o risco de arranjar dor de cabeça. A que eu tenho de ressaca já tá de bom tamanho.

Depois de continuar assim, dividindo sua sabedoria amorosa, a depiladora explodiu numa gargalhada encenada. A cliente ensaiou um sorrisinho para não dar uma de antipática, mas não pôde conter seus pensamentos, que pediam voz.
-Então, você jamais se permitiria gostar de um cara que fosse duro?
-Duro só na cama, meu bem- riu de novo, balançando os peitos avantajados e morenos, que se deixavam espiar por um decote generoso.
- Pois, eu...- tomou coragem a depilada- quero alguém que me ame.

A sádica da cera gargalhou outra vez. Agora, com mais força.
- Você já deve ter dividido muita conta com homem folgado!
Mal sabia ela que as contas tinham sido pagas inteiras, e em tantas vezes, que a autora dos gastos até perdera a conta.

"Mas, o que tem de errado nisso? Eles não tinham grana. Se tivessem, sei que fariam o mesmo por mim...", pensou a moça, que agora se levantava da cama. O problema é que as coisas terminavam antes para ela, e o destino não dava tempo para a tão esperada inversão de papéis, no quesito Arcar com as Despesas.

- Gilda, a Irene já tá aí te esperando. Terminou?- a secretária entrou na sala falando alto, e fazendo a jovem freguesa se apressar na vestimenta das roupas, que ainda grudavam um pouco no corpo.

-Vocês viram a novela das oito ontem? Nossa, gente! A Helena que o Manoel Carlos escolheu desta vez é muito fraquinha! Você acredita que ela disse pra ex do marido que ela podia visitar a casa dos dois quando quisesse? Cê acha que alguém ia engolir uma coisa dessas? Agora, aquela rival vai aparecer na casa da Helena nas horas mais incovenientes: em horário de comida, de faxina...

-Rárárá!- Gilda soltou sua gargalhada inconfundível, e a cliente, que vestia a blusa, fez passar logo a cabeça pela gola para que também pudesse rir.
-Essa Rita é uma comédia. Hora da comida, hora da faxina...Tá achando que novela é vida real!

Gilda, ao contrário, sabia bem separar as coisas. O amor burro pode ser aceito na ficção, mas só os amores fictícios cabem na realidade.

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