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VELHA NOVA

Meu hoje só resvala no amanhã
e já sinto o que ainda vem com uma intensidade inédita e imensa...

Não penso em lançar flores a iemanjá,
nem acredito em poder além do nutricional pra lentilha.

Decidi despetalar sonhos antigos sobre as ondas que trago
antes de fazer pedido aos céus.
E vi nesse oceano adormecido lembranças do que não é mais.

Sorri com lágrimas, só, por perceber
que sou um lápis suspenso depois do último ponto,
e esse só é final para o conto que terminou.

As cenas que avistei no meu mar interior
dão o tom das andanças que ainda vou rabiscar.
Por isso, colam-se no meu ar quando as desgrudo
de um álbum solitário para planejar o calendário.

Que bola grande essa de cristal dentro da gente!
É cheia de cacos remendados brilhantes, que às vezes
ofuscam ao invés de iluminar.

Vidente, vi dentro envolto em luz
cada momento de dor vivido antes.
Todos me fizeram radiante, com o peito cheio
dos olhares que me seguiram amorosos, fortes e preocupados,
escondendo o sofrer nas noites mais sombrias.

Passei o natal rodeada desses mesmos olhos,
com a garganta inflamada e madrugadas sem sono.
A dor me fez sorrir menos e, depois, culpar-me por ter adoecido
numa dessas fases raras em que se está com quem mais ama.

Mas, há suspeita de que o vírus malandro tenha me atacado por um beijo.
Então valeu a pena, assim como foi valioso penar acordada sem conseguir engolir,
enquanto meu coração se expandiu e se fez capaz de deglutir um mundo de tormentos.

Os anos novos que virão serão os melhores.
E não será sorte.
É que me descobri um monte de agoras acumulados.


CAMALEOA

Para aproveitar cada segundo deste momento raro de indignação libertadora, não vou prestar atenção à beleza das palavras escolhidas para escrever o que cá externo: São Paulo é um cidade camaleão. É uma em dia de sol, outra nas tardes de chuva e caos.

Depois de se passar por suas ruas quando ainda há claridade, já não se reconhece o mesmo lugar, transformado em retrato do submundo formado de perigo e prazeres fáceis. É o lugar camaleônico, onde também são assim as coisas que dele fazem parte. Mercearias se transmutam em puteiros; prédios residenciais antigos são feitos de república; parques verdes e tranquilos, de uma hora para outra, tornam-se bocas de fumo; e ruas de bairros chiques viram ponto de venda de belos corpos de homem...

As pessoas que convivem com o camaleão contagiam-se por essa habilidade para se modificar e ao mais incrível criar adaptação. Senhorinhas se espremem no metrô lotado, sem que ninguém facilite sua passagem. Como elas, os demais do rebanho se deixam levar pelos que empurram atrás, e não resistem à criada necessidade de se condicionar a um mundo que mais parece inferno.

Se chove em horário de pico, os ônibus não param. Já estão lotados, como estão as cabeças de quem sai do trabalho ansioso por chegar em casa. Num dia como esse, prefiro ir para casa a pé. Tenho sorte por morar perto do emprego e, como quem adivinha esse meu privilégio, dão-me guarda-chuvadas, quando tento transpor um dos pontos abarrotados de pessoas.

São gente com pele áspera a grandes distâncias de trânsito e cansaço de viagens na condução a pé. Mudam de cor, como a avenida Paulista sob as luzes de Natal. Riem da piada do cobrador, reclamam do tempo e da política e choram ou passam mal em meio à multidão, num dia de fragilidade. Mas, seguem engrossando o revestimento do corpo para se camuflar em meio a desgraças injustas. Sou parte da bicharada.


CARACOL

Ainda não entendia os porquês, embora os por ques não saíssem das frases confusas que ele ainda não sabia pronunciar. Já deveria saber que a bola colorida que lançou no quintal era de quebrar? Por que, então, deviam todo o tempo com ele ralhar?

Queria que nada se fizesse em cacos e tampouco seu corpo se pintasse com manchas rochas e arranhões quando despencasse das escadas, tentando voar. Mas, aos poucos, aprenderia que as coisas se quebram e são frágeis, talvez porque feitas de material duro, não da borracha macia e resistente do mordedor contra os dentes despontando na gengiva vermelha.

Mas, se até os balões, tão fofinhos, estouravam...Será que um dia também o colo molenga da mãe ia se desfazer? E haveria algum mal nisso de se perderem as coisas? Se nem sabia de onde tudo o que amava tinha surgido, como poderia imaginar para onde aquelas coisas iriam depois de acabadas? Ou elas simplesmente somem, sem nada ser colocado em seu lugar?

Certa vez, rasgara um urso de papel que saía de um livro de histórias, em alto-relevo. Viu quando a mãe levou os pedaços do desenho para algum lugar e depois voltou com o urso de novo inteiro. Era então ela quem tudo refazia? Lembrou-se que foi também aquela mulher de cabelo longo e perfumado que havia acalmado a dor do ralado feito no ato corajoso de escalar paredes. As mães deveriam ser como os super-heróis dos quadrinhos, pensou.

Mas, depois, recordou que a mãe do João tinha adoecido. Todos diziam na escola que ela ia morrer. Mas, então, até os seres fantásticos se quebram...Quando fez em pedaços o enfeite de cristal redondo e colorido que ficava na sala, foi a mãe que o estilhaçou um pouco, com chinelo em punho e olhar furioso.

As mães se quebram e também sabem quebrar, assim como ele. Gostava de esmagar formigas com o pé pequeno e não tinha pena quando um gato fugia por ele amedrontado. Só havia se sentido menor que os bichos do quintal quando, certo dia, bateu com um galhinho seco na cabeça de um caramujo, fazendo com que o bicho desaparecesse. O ser mole só tinha se escondido da ameaça dentro da concha, mas ele ainda não conhecia essas espertezas, e pensou que havia cortado a cabeça do caramujo.

-Era tão bonito...tinha antenas! Não queria ter arrancado a cabeça dele- disse à mãe, enquanto essa ria e esperava o bicho sair da toca para mostrar ao filho que ele não havia matado ninguém. O menino acabou rindo também, mas tinha um sorriso hesitante, entre janelas. Descobrira que até as coisas moles e espertas precisavam de duras carcaças para sobreviver.

-Mas, o que é duro quebra...- falou à mãe. Ela, sem dar importância, disse que as coisas só quebram se a gente não cuida delas. Com as mãos em concha, soprou para dentro do ouvido da criança um som engraçado, que a fez gargalhar. O garoto ficou mole como um caramujo e, ainda hoje, tenta achar suas antenas.


PINTA DE MENINA

Olhos com moldura acrílica primeiro e, depois, aros naturais formados pela sombra de um olhar cansado, chamados de olheiras. Com a retirada dos óculos, as feições pareciam mais livres, embora expostas à constatação do cansaço nelas retratado.

O retângulo do espelho contrastava com o círculo do rosto arredondado, assim como esse fizera antes com as lentes retangulares dos óculos. Sem eles, a face parecia infantil, mas era só colocar novamente sobre os olhos ingênuos aquele par de retângulos para que o ser refletido se transformasse numa pessoa quadrada, do formato que devem ter as responsabilidades.

Óculos lembram máscaras. Sem eles, era tão diferente: as lentes não cobriam mais o ossinho do nariz empinado e curioso e o aro azulado já não impedia a visão de uma pinta saliente salpicada no lado esquerdo do rosto, logo abaixo do declive que separa os olhos das bochechas.

Pintinha esquisita aquela! Vermelha, de longe, parecia uma espinha, mas, de perto, era como uma pequena bolha de sangue, capaz de estourar, vertendo líquido ao mínimo toque de agulha. Aquele pontinho era vibrante e parecia feito da mesma carne que preenchia o resto do corpo, diferente das pintas negras, tão semelhantes a marcas feitas com lápis de maquiagem. Desse mesmo modo, também sugerem ser acessórios, e não parte do corpo, as unhas, os cabelos...

Os fios vistos agora eram compridos e despencavam em cachos. Sua dona não parecia crer na ideia de que os cabelos são detalhes apensados aos seres. Não cortava a juba havia meses, como se houvesse sentido dor nas vezes em que a mãe a fizera deixar as madeixas curtas, a contragosto. Mas, agora era uma mulher. Quando sorria, até podia ver nos cantos do olhar alguns pequenos riscos, anunciando marcas de maturidade.

E conseguia transmitir seriedade usando óculos. Nos momentos em que se mostrava assim, sem sorrir, reprimindo a boca rosada e cheia de dentes grandes e desinibidos, parecia mesmo decidida. Quem olhasse a julgaria com coragem para cortar em vários dedos o cabelo e tirar do corpo todas as várias pintas que possuía, como o médico lhe havia recomendado.

Mas, na pinta vermelha ela não queria mexer. E isso não porque a pequena bola avermelhada fosse menos ameaçadora que as outras, segundo o olhar do doutor. Mas sim, porque era a mais perigosa do ponto de vista de sua dona. Ela faria questão de manter a manchinha vermelha ali, para que, quando estivesse só e sem necessidade de máscaras, pudesse se ver cheia de algo sangrento e pulsante, antes contido por retas geométricas.

CONVENÇÃO

A vida está debaixo do tapete,
e na boca de gravatas ambulantes
que enforcam quem não as usa
e anunciam metas de desaceleração
do fim aceito,
do sofrimento
da poeira escondida pelo capacho.

A vida não quis ter pé limpos sobre sua cabeça.
E quem quis?
Antes de respirar, ela elegeu gravatas
e se escondeu pra não sujar a sala.

E se empoleirou em pirâmides humanas
cambaleantes...
E no alto de árvores castigadas,
pelo tempo acelerado por um relógio de ouro,
que espreme os pulsos de quem não o usa.

A vida encolheu,
acreditou que era menor,
primitiva, errante e desorganizada,
mas existe porque não sabe ser diferente.

A viver,
veio a ver,
que não soube ser usada e,
de pronto, foi condenada
a inalar fumaça.

Não há por que temer.
A gravata conversou com o relógio,
ajustou as turbinas e ponteiros
para matar tudo mais devagar.

A vida não sabe espreguiçar.
Ela pula de janelas e viadutos,
tira-se do mundo quando quer.

E ri de objetos antropomórficos que,
carrancudos e de ombreiras,
dão de ombros ao que é.


FAXINA

Enquanto torcia o pano,
era a alma que se retorcia.

Vassoura em punho,
pensava em se varrer com a poeira.

O sol a pino, a pia no sabão,
O piar dos pingos com espuma
eram piano a tocar choro.

E essa canção ela bem conhecia,
e cantava por dentro,
limpando um tédio escuro,
Preto como sua mão e o céu
na hora de ir embora.

Não queria alvejante
pra cor negra que causava, limpa.
Embora branqueasse roupas e piso,
pisada na autoestima.

Precisava sim da luz sem manchas
do sol de domingo.
A cozinha suja de feijão,
a cerveja gelada,
as unhas de novo pintadas,
E o esfregão do peito de Zé,
na roda de samba,
a lhe roçar, lavada.


COLÍRIO

O que vejo
é raio X do meu sonho.

O que sonho
foge ao foco da visão.

Da janela do olho,
minh 'alma mira sem ser mirada
e é morada de um filtro adormecido.

Cores demais embaçam a vista.
Preciso do breu esclarecedor,

da luz que enxergo
com vendas nos glóbulos oculares
e lentes nos glóbulos do sangue.

O que vejo
me alveja.

O que pulso
me impulsiona.

Veja que lindo o vulto negro dos meus pensamentos silenciosos!

Ouça meu tato, toque a moldura dos meus óculos,
e deixe que, de olhar cerrado, eu crie sua imagem.


FDS

ter
qua
qui
sex
seg

te
qu
qu
se
s
d
se

t
q
q
s
-s
-d
s

d
d
d
d
d
d
d

Tudo
Que
Quero
Ser
Se
Dissolve


HIPÉRBOLE

Busco o prazer longe da casca.

Sofro no centro de cada célula
pelo sentir que de fato valha.

E só o que pago para ver
é o viver e morrer de amor.

Meio termo não vale
nem chega ao que fale
com seus passos tímidos diante do abismo.

É metade e não meio ao meu fim...

Prefiro acabar-me inteira,
muito ao fundo e à beira
do mero gostar de mim.


SALDO

Minha saudade é o vão
entre deixar partir
e me partir em lembranças.

Sou dividida por essa fresta
sem aceitar que por ela
cenas de negativo escorram.

Quero saber o segredo, se algum há,
pra livrar a saudade e o além guardar.

MUDANÇA DE TEMPO

Teve a impressão de que uma nuvem escura havia aparecido no céu enquanto piscara. Ia chover, pensou. E se entristeceu ao constatar o futuro temporal como mera repetição de outro tempo em que também gotas caíram do alto sem que ele tivesse dado valor.

A virada do clima pedia acompanhamento. Foi, então, à cozinha pegar uma tacinha de vinho. - Bebendo de novo, senhor Olívio?- Encheu um copo maior que a taça e virou as costas para quem lhe fazia a pergunta porque não gostava de ouvir os resmungos, ou talvez sequer os tivesse escutado.

Sentou-se, de novo, à varanda e lá veio lhe atormentar a mesma nuvem. -Aí vem pé d'água! - comentou como quem acaba de fazer uma descoberta, esperando continuação para a conversa. Havia alguém a lhe fazer companhia, além do céu nebuloso. Mas, essa pessoa preferia ficar em silêncio e olhava em direção à rua com ar desinteressado. Afinal, quem é você menina?- perguntou.

- Sou a Maria. O senhor não lembra?- Ele mudou de expressão e o nascer de um sorriso abriu-lhe o azul da face. - Mas, como você cresceu! Esse tempo voa mesmo. Ontem era um toquinho, e agora é uma mulher...

A nuvem escura continuou a fazer sombra na terra. - Será que vai chover, vô?- O velho franziu o cenho, entortou a boca, bebeu o resto de vinho tinto no copo de vidro que segurava e falou. - Mas, quem é você, hein? Onde é que tá a Laura? Aquela mulher dá chance pro azar...

Parou o discurso pela metade interrompido mais uma vez pelo anúncio de chuva que o distraía, como o mais importante dos acontecimentos. - Vai pra dentro que vai chover!- disse de repente para Maria.

Mas, por que tinha a impressão de estar repetindo aquilo? Por que cargas d'água o entorno, assim como ele, tinha de se tornar velho, desbotado e empoeirado?- Inquiriu assim o tempo, pedindo a indicação de um sentido para tudo. E fez isso, não por se incomodar com as rugas, os cabelos brancos ou a dificuldade para andar, mas porque se via agora incapaz de enxergar qualquer coisa nova.

- Está tudo bem, vô?- Quem perguntava trazia na blusa uma flor feita de miçangas e plantada com ramos de linha. - Mas, que coisa bonita essa...- A menina sorriu com o elogio, não por vaidade, mas por notar que Olívio ainda se admirava com os detalhes simples e belos da vida.

- Vai cair um toró e a dona Laura sumiu. Entra em casa e procura por ela, menina. Se aquela velha tiver na rua quando o temporal começar, vai ficar doente.- A jovem não se surpreendeu com a ordem do avô, que terminou de falar e cheirou o vinho a transbordar-lhe o copo. Quando deu o primeiro gole, já se sentiu enjoado. O horizonte mudou de cor e o vento soprou com força. Faria tempestade de novo- pensou- e, de velho, percebeu que a tormenta era só de passagem.

- Vamo entrar, vô! Agora vem chuva mesmo-. Enquanto a garota recolhia as cadeiras do alpendre de onde se via o jardim, Olívio quis sentir por alguns instantes o ar se mover com violência contra os ossos, fazendo inflar sua camisa amassada. Foi quando olhou para as folhas se balançando no canteiro e notou que as margaridas tinham secado.

- A Laura morreu? - indagou como se acordasse de um sonho. Só lhe respondeu a nuvem escura e carregada, que ainda se arrastava pelo céu armado.


ESPELHO DA BARRA

Hoje tenho uma pressa,
que não a do ponteiro que tudo pontua.
Mas, de pontes que me levem a barras
de onde eu possa me ver sem barragens.

Já não quero metaforizar o entorno
que se entorna sobre mim como lama.
Todas as palavras de todo o mundo hoje estão sem significado.

Eu que tanto fiz e faço uso das letras,
Agora me sinto por elas usada.
Não posso expressar o que me ultrapassa.
Meu espelho é sem moldura e sou moldada.

Mas, não sinto ser eu no reflexo,
Sou refletida por olhos estelares que me cercam.

Não existo, embora viva todo o tempo.
Conto com tabuada o dia em que me reconheci.
E devo ser mesmo só parte de uma conta.

Quis fugir para dentro de um conto,
Mas em ilusão real já me encontrava.

Com vocábulos sem sentido,
Hoje desejo não ter fala:

O deserto oasístico da dor,
O silêncio do olhar cúmplice,
O riso verdadeiro e sem som.

Preciso escrever com as marcas de expressão de um velho,
e combinar gestos dos outros para relatar pensamentos que calo.

Porque perdi a fala, ou nela me perdi.
Encontrei sol na solidão e para o que era morri.

Ainda há vida sob frases e vidros espelhados.

BRINCANDO DE COLORIR


O primeiro elemento retirado da caixa era o azul. Com aparência de novo, bem apontado, tinha no corpo a cor brilhante e na ponta o mesmo tom, mas em versão opaca. O outro integrante do grupo, ao lado, com menor estatura, aparentava já ter sido um pouco mais gasto. Sua coloração era vermelha e ele trazia na parte inferior do corpo um pequeno pedaço descascado. Talvez o autor do estrago fosse alguém ansioso, com o hábito de morder enquanto mastiga pensamentos.

O terceiro integrante era o mais bonito, todo lilás. Aquela cor tinha a capacidade de transformar as demais num lindo arco-íris, embora ela própria tivesse que se retirar dele depois, por não pertencer à composição da aquarela natural. Mas, por mais que sua existência viesse da junção do vermelho e do azul, com pitadas de branco, ela tinha personalidade.

Não bastasse sua intrínseca beleza, essa peça do kit tinha sido apontada de modo diferente, como se a lâmina que buscava trazer o grafite à vista, na hora de retirar lascas da madeira, tivesse atuado com a delicadeza de quem trabalha para fazer uma escultura. O quarto integrante, por sua vez, era pequenino, embora não parecesse gasto. Em sua superfície, nenhum arranhão, apenas a cor amarelo ouro, reluzente como a do sol que acaba de nascer.

O próximo integrante, o verde, um pouco mais alto, trazia a ponta quebrada e parecia triste por isso, como se a falta de algo no topo da cabeça fosse motivo para gozações por parte dos outros do grupo. Por fim, via-se ali o branco. Tão pequeno quanto o amarelo, ele, porém, fazia jus à comum relação que se estabelece entre o tamanho do lápis e seu tempo de uso.

Pode ser que sua expressão de velhice e exaustão viesse das marcas grosseiras de golpes feitos a estilete que ele trazia próximas à ponta. Por que não usaram o apontador?- ele se perguntaria, caso escondesse sentimentos sob sua cor pacífica e aparentemente vazia, ainda que capaz de guardar em si os espectros de cada uma das cores primárias. Há crianças que fazem lápis-de-cor de pessoas, criando historinhas para serem interpretadas pelos objetos pontudos de madeira. O tempo passa e, de repente, elas se veem brincando só com uma cor.


OVERDOSE

Fome de açúcar
Sede de amor
Ânsia por sol

Tem falta de mar no metrô,
Nadam no ar sem O2.
Falta aqui o que sobra em algum lugar.

Há sóbrios abstinentes na corrente de dor.

Medo da satisfação.
Saudade do que não foi.
Porre de ilusão.
Ilustres porradas ilustram com borrões
a realidade.

Busca por paz?
Pasmaceira
Enjoo do mal?
Cegueira

Sofrer cortes fora da pele.
Depenar flores que voam
e achar no miolo o pólen vazio,
enquanto as asas já se foram.

Fome de ácido
Sede de terror
Ânsia por chuva

Falta métrica no mar,
Oxigenam o nado sem ar.
Sobra aqui o que falta em algum lugar.

De igual só os sóbrios abstinentes,
agarrados à mesma corrente.


O HOMEM DA REPRESA

Repreendido desde criança,
quis ele um dia fazer represália.
E prezou os meios mais apressados
para tentar fazer de presa a maldade.

Aprisionado na realidade,
empresariou atividades
e nessa empreitada empregou métodos
que não lhe emprestaram felicidade.

Será que empreender e aprender vieram do mesmo radical?
Origem de tudo é prender...
verbo e verso, nada anormal.

Compreender o mundo é tarefa árdua,
Incompreender é com o prender tudo.
São jogos de peças humanas e palavras,
e o menino represado é homem mudo.

Mas, quis represar o próprio medo.
O medroso e mudo modo de viver
não trazia ao ser enredo,
porque enredado no só querer.

Pré-sou o amanhã,
não preso ao amanhã.
Busco realização pra alma,
não o rei e a lisa ação na palma.

Para ver as linhas da mão, teve que abri-las.
Abriu mão do ego e do punho antes fechado
para segurar sonhos e socar pesadelos.
Hoje, o preso, surpreso, é por si superado.

À margem da represa, à margem da empresa,
mudaram-se letras para tudo mudar.
Umidecida na natureza,
a muda é plantada e se faz escutar.

Palavras são larvas em lava
onde o sentido se dissolve ao mínimo olhar.
Com um olho d´água à frente, o homem da represa
olhou para dentro e não se viu presa.

Ele agora era correnteza...

Do presídio ao presente, fé e certeza.
Não é preso, é presente das circustâncias.
E segue o lago das veias em suas andanças.


ABRAÇO MONÓLOGO

Com calos na garganta, eu me calava
até falar línguas que não conheço
e conhecer as próprias falas em outras línguas.

Minhas cordas vocais, Alice ou não,
passaram a tocar nova canção.

Palavras sem som agora ecoam em mim
e fazem assim que eu me sinta parte
de um canto à parte.

Talvez menos mudo, mais mundo,
cheio de gestos e bocas que falam
para que ouça minha alma prensada.

Expansão, expressão,
realidade artística, arte realizada,
flores em rostos,
beleza simples e inspirada.

Com risos e contos da vida
descobri um dialeto.
Nele, dias e afeto
me afetam a caminhada.

Novo código de comunicação,
comum ação com regras
para a descoberta do todo desregrado.

Miro a fresta da cortina
que separa fantasia da verdade
E finjo saber o que sinto por pura vaidade.

MICHÊ

Tinha um garoto na minha rua.
E havia tantos outros ali...
esperando cédulas cairem em suas cuecas.

Eu sou como eles, em plena segunda-feira.
Aguardo os mais caros trocados da vida,
e que me troquem de lugar.
Desejo que me queiram e queiram tocar.

Talvez seja gananciosa, pense como quiser.
Apenas veja-me de um modo, para assim me ter.

Por querer, quero tudo e não sei o que quero.
Só sei que da vida e da morte algo nobre espero.

Fora da nobreza, da grande realeza:
Níqueis feitos do aro do círculo que forma a metade de um mundo cortado.

Apertem meu pescoço, mas mantenham-me em gozo.
Sem a cabeça de baixo, ao sabor do ar, em pouso.

Preciso de um troco
para o balanço que faço,

sem jeito e nada sexy,
do mal estar que disfarço.


ARTE REPRIMIDA

Não sei se não o tenho,
ou o tendo não sei usar.
Esse tal tesouro que foi perseguido por Mutantes,
está em tudo e, ao mesmo tempo, nada.

De antigos festivais, talvez sejamos rivais,
adulando velhos ídolos que trocamos de lugar,
para suplantar a falta de noção de onde se está.

Já não há Ditadura,
duro é o dito de que não há mais vilões.
Porque talvez eles nunca tenham existido,
mas apenas se arrastado sobre outras existências.

Sou opressora de mim
e uso um cárcere de carne.
Não consegui sair para ver-me em outros corpos.
A isso, aguardo a morte.

Aluísio Palhano Pedreira Ferreira desapareceu em 1971.
Sindicalista, conheceu Cuba na época do exílio.
Quando soube, desejei que fosse meu parente.
Pois, também trago Ferreira e de heroísmo sou carente.

No fim,
no passado,
no irrecuperável.
No nada minha joia sem uso reluz.

E não se pode dizer seu nome
sem antes empunhar algo que atire.

Vi o show do Rei da Jovem Guarda
com a emoção de um documentário da guerra.
Pra não dizer que não falei das flores,
cantei com lágrimas brotadas da terra.

Acho que sei onde está o bem tão buscado,
liso,
frágil,
raro,
e permeável.

Talvez o aproveite exatamente agora,
em momento do qual já sinto saudade.

Pois, logo ele vai,
sem que tirano o tire do ar que todos respiram.

Sem passaporte ou porte de armas,
sempre solto, alheio a avisos sobre a volta,
o bem valioso
é a liberdade subutilizada.

ANACRÔNICA

A noite seria normal se algo estranho não tivesse, de repente, despencado do quarto andar de uma prédio da avenida Paulista. Tinha sido Ana e a idéia que lhe ocorrera de jogar a televisão pela janela. Gostara a louca do resultado da sua ação descontrolada. Não havia mesmo acertado ninguém, e agora ao menos tinha a paz de ouvir o próprio silêncio e a falta de barulho do apartamento.

Se lhe chegava o burburinho dos passantes parados diante dos fios e peças estraçalhadas do aparelho descartado do alto, ao menos, esse som era diferente da algazarra de buzinas, gritos, risadas e tilintar de copos, tão normais para uma sexta-feira, em pleno happy hour sem sal, ainda que cheio da gordura de porções em mesas de bar.

Enfim, dormiria traquila e escondida no anonimato da falta de conhecimento de todos sobre a autoria daquele atentado à integridade física dos transeuntes da avenida movimentada. E isso sem se sentir culpada. A culpa permanente que tinha experimentava por motivos muito menos reais e mais incompreensíveis.

Quis escrever uma crônica, mas se sentia cronicamente incapaz. Irritava-lhe a convivência mesmo com as personagens televisivas, mas se via, ainda assim, solitária. E, irremediavelmente, seria assim para sempre. Talvez por isso já buscasse se preparar para a data final, tamanha era sua necessidade de controlar o rumo da vida diante do medo do sofrimento, embora soubesse que ele, tal qual a solidão, jamais poderia ser evitado.

Tudo o que sentiu que, naquele momento, deveria comunicar às paredes a voz de um cantor gringo do qual não fizera questão de saber o nome falou por ela na forma de acordes depressivos. Estava entediada, longe de livros que queria ler e sentada sobre fotografias que tanto quis rasgar, mas permaneceria assim. E isso até que tivesse forças para voltar a conviver com algo além da presença insuportável de si mesma.

Por que deveria ter medo de ser decepcionada de novo se nada havia mais desapontador que o fato de estar abraçada a um espelho, bebendo o vinho que brindava com o reflexo das próprias fraquezas? Seu celular vibrou, fazendo mexer cada pelo do corpo arrepiado pela carência. Ou, seria apenas sensação de ausência, de espaços em branco que via em si e em sua consternação diante de tanta palavra solta, tanto abraço impalpável e tanta lamúria indolor?

Quando viu na tela do telefone móvel que o que chegava era um aviso para que colocasse novos créditos, soube a resposta. A comunicação com o mundo havia perdido sentido e Ana perdeu seu resto de razão quando lhe voltou o ímpeto de lançar mais algo através da paisagem da sacada para que se estilhaçasse no solo.

Mas, não jogaria mais nada nem se lançaria à morte ou à vida desconhecida e assassina das ruas.
Apenas acenderia um cigarro e curtiria o suicídio dos sensivelmente covardes, até que o telefone tocasse e alguém lhe convidasse a fugir de sua companhia feita de inércia, sonho e vazio.


AGRADO

A graça da vida está na séria mania
de colar sem gracices
para formar um mosaico gracioso.

Às vezes, um gracejo produz vazio,
enquanto a desgraça, com seu desvario,
pode fazer do outro dia ação de graças.

Nada é de graça!

TARÔ

Tenho feridas fechadas,
Dores que degusto,
e desgostos que adoro.

Deve ser culpa do câncer,
Estranha doença que dentro corrói.
Fora me dói,
E do zodíaco afrodisíaco me escorre por veias.

Tenho luas abertas,
Signos sem ascendentes,
Ascensões insignificantes...
Vendedor ambulante
Das bulas que não sei ler.

Antes madame me dissesse
Se adianta alguma prece.
Ou o fim é uma benece,
Que eu cavo em sulcos na palma.

Tenho portas semicerradas
Chaves perdidas
Perdas chaviadas,
Atrás, medo latente e uma alma embrulhada.

Piso búzios entre cascalhos,
e sou todo embaralhado.
Leia-me e eu te devoro.

TPM


Tensa
Para Melhor Tragar e Pós Mitigar Tri Paixões Mulheris
Para
Mistificar,
Tiroteiando
Parceiros
Mudos,
Tesouros
Publicamente
Menosprezados


ESPONJA

Quis fazer caber numa palavra
tudo o que o mundo abalava.
Mas, frustrado, tornou-se metáfora.

Ía caminhando pelas ruas e, a cada vala,
numa diferente parte podre de si resvalava.

Via que cada um que cruzava
estava numa encruzilhada e não percebia,
enganosamente agarrado a uma carta,
de jogo, da cartomante, do apóstolo ou do amante.

Que flagrante
havia dado na miséria sem classe ou cara.
Não havia mais espaço ou classificação para a angústia que,
por osmose do todo, o tomara.

O arredor ruía, mas só ele notara.
Por seus sentidos porosos tudo entrava e nada jorrava.

Absorto em poetização solitária,
seguiu transpirando sonhos natimortos
em meio a uma nuvem carregada.

BRINCADEIRA DE LEI

Tem uma lei, tem uma lei
E tenho que seguir.

Mas, sei que tem, tem outra além
e eu quero seguir...

Por lá eu só quis caminhar,
mas a placa indicou que eu devia parar.
E a curva que veio como onda a puxar,
eu tive que dispensar por só saber ficar.

Tem uma lei, tem uma lei
E tenho que seguir.

Mas, sei que tem, tem outra além,
e eu tento seguir.

Por que será que só,
só sei saber o que mais alguém sabe
de letras tão grandes que amassam meu ser?

Por que será que só,
só sei dizer o que já li escrito
em folhas de chumbo e madeira de lei?

Tem uma lei, tem uma lei
E tenho que seguir.
Mas, sei que tem, tem outra além
e creio, vou seguir.

No mar, eu só quis caminhar,
mas o vento falou que era pra eu navegar.
E, num barco sem freio, eu não pude parar
porque a imaginação não sabe legislar.

PANCADA

Tenho medo da chuva,
não pela fúria do seu trovão,
mas pelo clarão dos raios.

Não me assusta o pranto em forma de enxurrada,
tampouco fujo do vento que faz a ideia embaraçada.

Temo sim o fato de água ser límpida e passageira.
Gotas passam por mim e logo secam ao sol que vem.
Mas, sigo molhada sem ter lavada a parte que não convém.

Queria ver cada jato penetrar fundo a pele,
fazendo a varredura de tudo o que dentro fosse folha seca.

Peço para o choro do céu umidecer o peito,
mas ele só salga a face antes de morrer no leito.

Bom seria a chuva não soubesse somente chorar e fazer chorar.
Bom será quando a fé, essa sim, quiser me aguar.

Pois, sentimento é raiz,
mas sofrimento é terra
que se pode remover e arar.

Desilusão é tão natural quanto cheia no rio.
E não criei ainda canais para conter futuras mágoas.

Resta então o eterno magoar-se em águas,
sem, porém, deixar-se afogar.

Toda terra é cultivada
e a natureza, renovada.

VÔO

Ouvi um professor letrado dizer que era um absurdo a última Reforma Ortográfica da Língua Portuguesa ter retirado do verbo voar, quando transformado em substantivo, o acento. Para ele, depois da mudança a palavra deixara de ter movimento porque perdera a asinha ao contrário sobre a sua cabeça, que antes lhe fazia poeticamente voar.

Pensei, depois, enquanto via uma ave em voo da minha janela que o mundo também me tirava aos poucos pequenos detalhes naturalmente parte da minha ortografia. O acento no nome próprio não havia saído do lugar com a nova gramática. Mas, durante o dia, todo o tempo, trocavam-se as sílabas do meu modo de ser até que eu perdesse assento nessa confusão chamada dia-a-dia (será que isso tem hífen pela nova regra?).

Agora o tracinho é o vilão dos vestibulares, e eu sem sentar no ônibus brinco de acentuar de modo diferente velhas palavras, criando pra elas um novo traçado. Quem me dera poder viver e escrever o tempo todo, segundo o que entendo ser bom e belo. Viajei com tais idéias (já que o texto é meu, recuso-me a tirar nele o acento do E de "idéia" por pura rebeldia) até que minha mente parasse, junto com o trânsito caótico e também parado.

Na cidade onde as coisas só param quando não querem parar, cai como uma luva a supressão do acento diferencial entre o "para" da preposição e aquele que vem do verbo na terceira pessoa do singular. "Excesso de carros para o trânsito" é frase de intrínsica ambiguidade. Os congestionamentos param e também são para o trânsito inevitável realidade.

Só consegui terminar meu devaneio sobre como seria acentuar tudo de acordo com minha vontade já de frente à paisagem iluminada e barulhenta que avisto de minha janela. Foi quando se aproximou do meu olhar a ave que eu observara longe, e então percebi que se tratava de um saco de lixo negro, voando como uma ave escura no céu cinzento, sem assento ou pouso certo. Preferi continuar pensando numa ave se dirigindo até mim em vôo livre, embora meu pássaro imaginário não tivesse acento ou qualquer outra coisa que, auxiliando a expressão linguística do seu sentido, pudesse lhe dar graça.


NOIVA

Andou dez passos como fossem milhas,
Vestiu o travesseiro como a própria filha,
Esperou que uma noite fosse toda a vida.

Chegou ao pé da cruz com as duas pernas bambas,
Esperou que lhe acolhessem sobre a velha cama,
Dançou valsa sozinha abraçando a taça. 

Embebedou-se de amor,
Enamorou-se da praça.

Caiu sob o véu da neblina da tarde vazia,
Pediu benção dos céus pr 'agonia coletiva,
E abraçou chorando suas lembranças vivas.

Enquanto se entregava em lua de mel ao acaso,
teve com o caos um caso...

E assim causou no mundo,
Acusou os homens
e acenou à morte.

Até que, açoitando e aceitando a sua fragilidade,
Deitou-se esposada da humanidade. 


VÂO

Até a ladeira tem dois lados,
o de escorrer ou no topo ficar.

Por que então me exigem tomada de partido
como se a vida fosse uma partida em tabuleiro quadriculado?

Até podemos ter jogadas preprogramadas,
mas jamais vencemos em absoluto o medo.
O maior concorrente que temos somos nós
enozados na teia inescapável da finitude
e da pequenez frente à magnitude
do universo.

Por que então me exigem buscar resposta pra tudo
e escolher uma direção a percorrer como escudo?
Vejo-me por várias trilhas,
sou capaz de correr milhas
sem achar que perdi minha incapacidade.

Porque não importa em que parte do mundo
ou do assunto eu esteja,
Manterei a fé ou o fim que me alveja.

Passe da lua ao sol,
não mudará o que o prende como anzol.
O ser vão da vivência
ou ser vir à existência.

Nem cá nem lá,
prefiro ser só vão
por onde me vão antigas ideias,
e não vou, mas vão me completar.

Perguntam-me se não acho o espaço entre lados vazio
e não quero agarrar-me ao fio de uma crença,
mas sinto mais paz atrás da iluminação obscura
garimpando fios de sol que atravessam os sentidos.

Foi-se tempo em que pelo vão só eu ía.
Agora por ele outros vãos vão também.
Espero a revolução feita de generosos espaços
onde a união seja a soma dos vazios.

Na matemática inexata da eternidade,
menos mais menos dá mais.

Sou cheia de mases e mais
e me preenche o que falta alcançar.
Resta-me o receio de que pelo vão
nada pare e a construção só resvale.

Pois o maior desafio de não estar preso a nada
é prender o real que tanto quer vazar.


SAVANA SOCIAL


Não sei um só canto, não caibo num só conto.
Sou feita das contas do cálculo do acaso e daquelas
que formam o terço da fé num altar.

E vivo no canteiro onde nasci plantada,
mas vejo, do rio, na outra margem,
de mim diferentes folhagens.
E sou incontida com tão belas imagens.

Porque não contenho tudo o que me forma.

Ao meu redor só há pé como os meus.
E quanto mais nos esprememos no mesmo cercado,
menos passos encontramos para outro caminhar.

É estranho como a cada fala sobre o que sou,
menos me sinto parte de qual parte seja.
Preciso que alguém me veja,
e sou só uma folha que pouco verdeja,
em meio a tão grande e imponente plantação.

Então de repente
quis ser do entorno diferente.
Fotossintetizei as cores diversas da vazante do rio
e verti todo o carbono que dividia o ar
em suave brisa que me levou o espirito junto de outras terras.

À margem, pulei do rio as águas,
molhei-me de corajosa humildade
até me expor à luz de astros além do sol.

Tempos depois interiorizado o intercâmbio,
Fiz florescer todo o aprendizado,
e dei à vida o fruto da minha consciência.

E ela cresceu e, de tão espandida, rompeu,
deixando-se repartir em sementes leves
e capazes de voar com o vento da esperança.
até a mais distante instância
onde houvesse um coração fértil.

A estufa do estável me sufoca
e o adubo da dúvida me alimenta
porque, parte da natureza,
temos como ela preciosa imprecisão.

A busca sem freio por certeza faz parar a evolução.
O aumento do cultivo não significa mais produção.
O verdadeiro semear é o desinteresse
regado em doação que fizesse...

tudo de um ser pouco
e o pouco de todos ser tudo.

Abrindo-se, aos poucos, espaço
para a verdade destinada aos que amam.


PODER


A morte de um nada é
quando a vida do outro é soterrada.
Vidas sob escombros desaparecem
sem se perder da minha mirada.

Toda ideia que tenho sofre ao não encontrar guarita
e tenho vergonha de ser humana,
se é acabado um conceito de humanidade.

Olha-se o outro com desprezo por não se enxergar
que toda vista é um reflexo, ainda que não reflexão.

O homem não é sociável, embora social.
Reúne-se para somar forças por desejo que é só seu.
Assim, de um mesmo grupo, sai tanta discordância.
O ser perde o elo com o mundo quando vive intolerância.

O poder anda com o dinheiro,
O querer não encontra riqueza que lhe baste.
Se alguém pode uma coisa, logo pensa que é pouca.

A vida é foda,
prazer e dor misturados,
excretas e energias de todo lado...

É o amar só depois de arrasado,
o valor sobre o já gasto,
e o eterno querer que nada pode.


AMAR É


Olho a praia e não sei decifrar
Onde termina o céu, onde começa o mar.
A linha no horizonte indecisa
não sabe se divide o ar ou desliza
até a visão de quem se sente um pouco infinito...

Como a linha infinita no azul,
não sei se sou norte ou sul.
Meu peito quer alto alcançar,
minha pele ondula ao luar.

Mas, a mente, essa traz a reta do olhar,
tortuosa, perdida,
silhueta escondida em nuvens,
ela plaina cadente e incandecente,
cortando qualquer brisa.

Os novelos brancos do céu invejam do oceano o balanço
e se vertem em espuma.
Uma estrela do mar cansa do agito em maré
e pula, de repente, ao devaneio, noturna.

Sou maresia, sopro de luz e dia
quando me deixo atravessar
pela preciosidade imprecisa.

Quero navegar e parar também celeste,
ser rosa dos ventos e ventar...
E a natureza inconstância me empreste!

Porque me sinto viva se me bate essa imagem
que o horizonte origina sem pedir passagem.


CONSELHO DE INSEGURANÇA


Sou conselheira primeira dos erros que cometo.
Não sou palestina, tampouco judia...
Apenas judia-me a ideia de ver tanto tormento.

A Organização das Noções Urgentes que trago na mente,
faz-me sem validade.
É ônus da benevolência humilde essa outra ONU apresentada,
unificada em nada, universal em fachada...

Somos mesmo menores em relação ao que criamos.
Meu Produto Interno é bruto porque ainda não se entregou ao ourives externo.
Fecham-se contas enquanto me fecho, conta,
pregada no tecido dos contos contentes que inventei.

Zonzos, de tanto olhar pro sol do umbigo,
agredecemos aos cientístas por nos dizerem o quanto somos insignificantes.
Cremos tanto nisso, que agora nos bombamos, com foguetes e anabolizantes,
E transpassando balas na carne e em mentes fugindo de fatos,
até que chegue a morte.

Pegue a última pedra e fume ou jogue no inimigo mais próximo...
Antes do apocalipse, já se forma o eclipse que nos faz deixar de ver a lua.

Saio, então, pra rua,
peço, parem,
Digo, sou nada e sou mais,
poderia ser eu a estar morrendo,
que diferença isso faz...

Ou, Deus planejou que estaria ilesa, sofrendo de tiros invisíveis?
Mirou um pouco pra cá, ao invés de me pôr em meio a qualquer conflito...
Me ama esse senhor e sou grata por viver colocada num campo de concentração sem fim.

Com centro em nada,
Concentro ação em tudo,
Pouca coisa mudo,
Mas vivo uma eternidade concentrada.

Que mistério cria o sofrer por outro,
E ao mesmo tempo o encontro sem propósito e palavras?
Que lição há contida na constante lida entre a felicidade interna bruta,
e as relações diplomáticas?

Onde vizinhos são estrangeiros,
mendigos são alienígenas,
Diferenças são afrontas,
Pode-se ser o mundo,
mesmo isolado e recluso em casa.

A TV e a NET dão ordem à humanidade,
e a ONU é parte do espetáculo humano de quem
brinca de Deus, destrundo homens e criando divindades.


GAZA EM GAZES

Com a palavra, o poderoso:

- No cômodo apertado da Terra,
Por comodismo, não quis ouvir quem divergisse.

E, com a vassoura em punho, apunhalei mil seres
inferiores que me impediam de alcançar desejos.

Sou rodeado de baratas humanas, e o barato humano
agora é detestar detetizando.

É cara a firmeza, embora seja para a promoção da segurança do mundo.
Sou seguro ao não querer sofrer a ameaça de qualquer mudança em tudo.

Com o zumbido, o inferior:

- Eu sou uma vida barata,
Minha mão calejada vale alguns centavos.
Meu sangue pode cair por terra, se não caírem as bolsas.
Minha família é morta, ou morre se nada come.

Enquanto, estranho e aceito,
o fato de que o alimento do mundo é o chumbo!

Ando chumbado, detonado, e arrasado...
perdi as orelhas que ouviam insultos.
Mas, mantive a boca pra maldizer o malfeitor.

E me deito muito antes de relaxar a dor.
Por que agora já não dou a outra face.
Cresci e me alimentei de todo o ódio imaginável.

Virei gigante em espírito histórico,
sem pele e de ossos perdidos em solo arenoso.

O alimento que me resta é também chumbo!

- De canhões e dólares sobrevive a vingança das baratas...