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ANACRÔNICA

A noite seria normal se algo estranho não tivesse, de repente, despencado do quarto andar de uma prédio da avenida Paulista. Tinha sido Ana e a idéia que lhe ocorrera de jogar a televisão pela janela. Gostara a louca do resultado da sua ação descontrolada. Não havia mesmo acertado ninguém, e agora ao menos tinha a paz de ouvir o próprio silêncio e a falta de barulho do apartamento.

Se lhe chegava o burburinho dos passantes parados diante dos fios e peças estraçalhadas do aparelho descartado do alto, ao menos, esse som era diferente da algazarra de buzinas, gritos, risadas e tilintar de copos, tão normais para uma sexta-feira, em pleno happy hour sem sal, ainda que cheio da gordura de porções em mesas de bar.

Enfim, dormiria traquila e escondida no anonimato da falta de conhecimento de todos sobre a autoria daquele atentado à integridade física dos transeuntes da avenida movimentada. E isso sem se sentir culpada. A culpa permanente que tinha experimentava por motivos muito menos reais e mais incompreensíveis.

Quis escrever uma crônica, mas se sentia cronicamente incapaz. Irritava-lhe a convivência mesmo com as personagens televisivas, mas se via, ainda assim, solitária. E, irremediavelmente, seria assim para sempre. Talvez por isso já buscasse se preparar para a data final, tamanha era sua necessidade de controlar o rumo da vida diante do medo do sofrimento, embora soubesse que ele, tal qual a solidão, jamais poderia ser evitado.

Tudo o que sentiu que, naquele momento, deveria comunicar às paredes a voz de um cantor gringo do qual não fizera questão de saber o nome falou por ela na forma de acordes depressivos. Estava entediada, longe de livros que queria ler e sentada sobre fotografias que tanto quis rasgar, mas permaneceria assim. E isso até que tivesse forças para voltar a conviver com algo além da presença insuportável de si mesma.

Por que deveria ter medo de ser decepcionada de novo se nada havia mais desapontador que o fato de estar abraçada a um espelho, bebendo o vinho que brindava com o reflexo das próprias fraquezas? Seu celular vibrou, fazendo mexer cada pelo do corpo arrepiado pela carência. Ou, seria apenas sensação de ausência, de espaços em branco que via em si e em sua consternação diante de tanta palavra solta, tanto abraço impalpável e tanta lamúria indolor?

Quando viu na tela do telefone móvel que o que chegava era um aviso para que colocasse novos créditos, soube a resposta. A comunicação com o mundo havia perdido sentido e Ana perdeu seu resto de razão quando lhe voltou o ímpeto de lançar mais algo através da paisagem da sacada para que se estilhaçasse no solo.

Mas, não jogaria mais nada nem se lançaria à morte ou à vida desconhecida e assassina das ruas.
Apenas acenderia um cigarro e curtiria o suicídio dos sensivelmente covardes, até que o telefone tocasse e alguém lhe convidasse a fugir de sua companhia feita de inércia, sonho e vazio.


1 comentários:

Anônimo disse...

Gostei do texto, simplesmente.