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VÔO

Ouvi um professor letrado dizer que era um absurdo a última Reforma Ortográfica da Língua Portuguesa ter retirado do verbo voar, quando transformado em substantivo, o acento. Para ele, depois da mudança a palavra deixara de ter movimento porque perdera a asinha ao contrário sobre a sua cabeça, que antes lhe fazia poeticamente voar.

Pensei, depois, enquanto via uma ave em voo da minha janela que o mundo também me tirava aos poucos pequenos detalhes naturalmente parte da minha ortografia. O acento no nome próprio não havia saído do lugar com a nova gramática. Mas, durante o dia, todo o tempo, trocavam-se as sílabas do meu modo de ser até que eu perdesse assento nessa confusão chamada dia-a-dia (será que isso tem hífen pela nova regra?).

Agora o tracinho é o vilão dos vestibulares, e eu sem sentar no ônibus brinco de acentuar de modo diferente velhas palavras, criando pra elas um novo traçado. Quem me dera poder viver e escrever o tempo todo, segundo o que entendo ser bom e belo. Viajei com tais idéias (já que o texto é meu, recuso-me a tirar nele o acento do E de "idéia" por pura rebeldia) até que minha mente parasse, junto com o trânsito caótico e também parado.

Na cidade onde as coisas só param quando não querem parar, cai como uma luva a supressão do acento diferencial entre o "para" da preposição e aquele que vem do verbo na terceira pessoa do singular. "Excesso de carros para o trânsito" é frase de intrínsica ambiguidade. Os congestionamentos param e também são para o trânsito inevitável realidade.

Só consegui terminar meu devaneio sobre como seria acentuar tudo de acordo com minha vontade já de frente à paisagem iluminada e barulhenta que avisto de minha janela. Foi quando se aproximou do meu olhar a ave que eu observara longe, e então percebi que se tratava de um saco de lixo negro, voando como uma ave escura no céu cinzento, sem assento ou pouso certo. Preferi continuar pensando numa ave se dirigindo até mim em vôo livre, embora meu pássaro imaginário não tivesse acento ou qualquer outra coisa que, auxiliando a expressão linguística do seu sentido, pudesse lhe dar graça.

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