Devia ter uns sete anos de idade quando aconteceu. Na época, eu já sabia que não gostava muito de falar e passava horas brincando sozinha, ou observando o que me rodeava. O comportamento peculiar para uma criança gerou entre eu e mim uma relação de estranhamento, ao mesmo tempo em que me empurrou para perto das palavras.
Sempre me senti tão íntima delas. Talvez porque fôssemos, de certa forma, parecidas. Ambas tínhamos necessidade de tudo explicar e capacidade de dar ao mundo diferentes significados. Éramos igualmente complexas e falhas.
Essas coisas, muito antes, eu já sentia, mas não sabia. Fui mesmo começar a compreender naquela data. Era um dia de semana como outro qualquer, em que se deve acordar cedo para ir à escola. Mas, dessa vez, quando lá cheguei não encontrei Dona Maria, com a lista de presença nas mãos e os óculos pequenos sobre o nariz rígido. Ela tinha ficado doente e, em seu lugar, mandaram uma professora substituta: Cláudia, muito mais jovem e menos assustadora que a titular do cargo.
Quando já abria o caderno e me preparava para responder à consulta diária da tabuada, tia Cláudia disse que naquele dia a aula seria diferente. "Vamos fazer redação", disse ela, "e o tema é "a barata". Não dei muita importância para essa mudança radical na rotina de início, e tampouco havia me agradado o assunto sugerido. Mas, quando pousei o lápis na primeira linha do caderno brochura e me dei conta da liberdade que eu passaria a ter, deixando minhas fantasias mais silenciosas escorrerem para a vida real da página, foi como se uma enxurrada de ideias de repente invadisse um espaço do meu interior até então vazio.
A colega do lado parecia preocupada: "Não tem muita coisa para escrever sobre baratas". Eu discordei em silêncio porque, na história que eu acabava de criar, as baratas eram muito interessantes. Tanto, que a personagem principal, depois de passar anos sem fazer um só barulho, resolvia, do nada, falar comigo. Eu e a barata protagonista nos tornávamos grandes amigas na narrativa e, depois, ela me levava para conhecer o mundo das baratas, cuja entrada era um buraquinho discreto na parede da sala.
"Mas, baratas não falam", incomodou-se de novo a vizinha de carteira, quando leu minha redação. O texto dela era sobre um inseto que seu pai havia matado na noite anterior depois de ouvir os gritos de medo da filha, ao se deparar com o bicho na cozinha. Na hora, confesso que, pela primeira vez, tive orgulho de ser quem era. Eu, assim como Cláudia, achei o que escrevi muito mais divertido e instigante. Foi quando entendi que as baratas não me amedrontavam, e as letras podiam transformá-las nos seres mais nojentos ou magníficos que se pudesse imaginar. As palavras, então, não serviam só para dar nome às coisas!
Assim teve início o meu relacionamento com a língua. Para me manter o máximo de tempo perto da minha mais importante companheira, decidi ser jornalista. Depois de dois anos de trabalho, já não sei se fiz boa escolha. Os eventos e prazos para a finalização de pautas foram se passando, e eu desaprendi em parte a arte de brincar com os sentidos das palavras.
Ou, pode ser que eu tenha é perdido a coragem de jogar com os meus próprios sentidos. Piso sobre as baratas que encontro por aí para me sentir destemida, mas a verdade é que receio olhar para os olhos desses bichos. Eu e a língua precisamos de profundidade para existir. E estamos cansadas de ser úteis e usadas.
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2 comentários:
Então foram as baratas que revelaram seu talento.
Escrevi um texto muito parecido uma vez, pelo menos na temática. Acho que esta triste descoberta é comum àqueles que achavam que ser jornalista era poder trabalhar diariamente com o amor às palavras.
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