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HORAS

Quis passar por tudo,
passando a limpo os dias,

Mas a vida é que me limpou
de raros espaços
para encher cada fresta do tempo
com palavras.

Essa tal linguagem
fala sozinha.
E eu me abandono calada.

Quis conhecer tudo,
mas fui parte de nada,
vi tudo de cima,
deslocada.

Até perceber que meu lugar
era a falta dele,
rarefeita de pessoas,
pouco dispostas a visitar o vácuo.

Evacuada do que mastigo com gosto
sem digerir,
abro o verbo e mostro minhas falhas.

Conheço o que em mim é natural.
Mas, cultivo artificialidades.

Tenho um orgulho plástico,
ilustrado de letras,
Guardo covardia e temor
da essência que se esgota.

Choro lágrimas de sepúlcro
na flor da idade.
Despedaço flores sobre a
lápide que nasce.

E finjo não me importar com rugas,
quando sei que minha alma está
cheia de pregas.

Passar a realidade,
alisá-la a ferro
sem medo da queimadura,
deixá-la com a cor pura,
da presença ausente de tons,
e discursar sem voz.

Não há silêncio que nada diga,
nem som que não se cale.

Ouvir exige não se deixar emudecer,
Falar é envolver a falta de barulho
com algum sentido.

Minhas significações
estão sufocadas
sob calendários
analfabetos.

HIPOCONDRIA

Há uma semana, trago esta sensação estranha de dor
que transpassa os músculos e ossos
mais próximos do coração.

Na sala minúscula do prédio, perto do metrô Anhangabaú,
um médico que fala esquisito me atende.

O exame admissional para o próximo emprego se torna oportunidade
para a queixa de algo sensivelmente indefinível.

Pressão normal, nada estranho para o doutor,
quando escuta as batidas do peito e os jatos de ar
que me vão do nariz às costas.

Ele me indica um ortopedista se a dor continuar.
Eu tenho a impressão de que é coisa grave,
dessas que não passam com sono e analgésico.

Talvez fosse a ressaca da noite anterior,
ou a tensão de se ver correndo por ruas cheias de pessoas,
sem poder parar para lhes ver a cor da face,
enquanto o relógio exige o caminhar veloz para, em seguida,
parar
em alguma fila,
dessas emperradas de gente com olhar vazio e ânimo pálido
diante de qualquer contrato.

Foram tantos os documentos e exames para provar quem sou,
que me deixei esquecer os porquês de onde estava
para pensar o que eu era.

Mas, de novo, a resposta não veio,
e voltei ao emprego antigo onde ainda restava um dia de obrigações
a cumprir.

Antes, saí da sala onde podia ler “Excelência em Recursos Humanos”
humanamente sem recursos para me ver com excelência.
Porque o que é excelente é insolente, se não significa
o que se espera da palavra.

Continuo com este aperto e às vezes o confundo com um infarto,
pânico besta e delirante que aumenta minha ânsia
por romper este corpo,
deixando meu espírito pueril correr,
para abraçar e absorver tudo o que ama
com urgência.

Penso, então, talvez fosse bom
que essa pontada no coração me acompanhasse
para sempre, lembrando a todo instante,
que um dia serei morte.

Euquanto espero, às vezes, pago comida para mãe e filha,
sujas e magras,
e também engulo a minha com enjoo.

Quero vomitar o que não sou,
quando sinto o gosto amargo da piedade caridosa.

Desejo beber algo forte antes de tomar a condução.
rumo aonde esperam que eu me encontre.
Quero fugir de ser respeitável,
se até meu respeito é condicionado por regra universal
e absoluta.

O conceito de bem me assusta.
A maldade me acompanha culpada,
mas não me condena.

Sou só mais alguém que sofre do medo,
corporalmente latejante,
de viver, casca grossa e oca,
sem o sangue que pulsa

e não se mantém com anticoagulantes.