Gallery

VELHA NOVA

Meu hoje só resvala no amanhã
e já sinto o que ainda vem com uma intensidade inédita e imensa...

Não penso em lançar flores a iemanjá,
nem acredito em poder além do nutricional pra lentilha.

Decidi despetalar sonhos antigos sobre as ondas que trago
antes de fazer pedido aos céus.
E vi nesse oceano adormecido lembranças do que não é mais.

Sorri com lágrimas, só, por perceber
que sou um lápis suspenso depois do último ponto,
e esse só é final para o conto que terminou.

As cenas que avistei no meu mar interior
dão o tom das andanças que ainda vou rabiscar.
Por isso, colam-se no meu ar quando as desgrudo
de um álbum solitário para planejar o calendário.

Que bola grande essa de cristal dentro da gente!
É cheia de cacos remendados brilhantes, que às vezes
ofuscam ao invés de iluminar.

Vidente, vi dentro envolto em luz
cada momento de dor vivido antes.
Todos me fizeram radiante, com o peito cheio
dos olhares que me seguiram amorosos, fortes e preocupados,
escondendo o sofrer nas noites mais sombrias.

Passei o natal rodeada desses mesmos olhos,
com a garganta inflamada e madrugadas sem sono.
A dor me fez sorrir menos e, depois, culpar-me por ter adoecido
numa dessas fases raras em que se está com quem mais ama.

Mas, há suspeita de que o vírus malandro tenha me atacado por um beijo.
Então valeu a pena, assim como foi valioso penar acordada sem conseguir engolir,
enquanto meu coração se expandiu e se fez capaz de deglutir um mundo de tormentos.

Os anos novos que virão serão os melhores.
E não será sorte.
É que me descobri um monte de agoras acumulados.


CAMALEOA

Para aproveitar cada segundo deste momento raro de indignação libertadora, não vou prestar atenção à beleza das palavras escolhidas para escrever o que cá externo: São Paulo é um cidade camaleão. É uma em dia de sol, outra nas tardes de chuva e caos.

Depois de se passar por suas ruas quando ainda há claridade, já não se reconhece o mesmo lugar, transformado em retrato do submundo formado de perigo e prazeres fáceis. É o lugar camaleônico, onde também são assim as coisas que dele fazem parte. Mercearias se transmutam em puteiros; prédios residenciais antigos são feitos de república; parques verdes e tranquilos, de uma hora para outra, tornam-se bocas de fumo; e ruas de bairros chiques viram ponto de venda de belos corpos de homem...

As pessoas que convivem com o camaleão contagiam-se por essa habilidade para se modificar e ao mais incrível criar adaptação. Senhorinhas se espremem no metrô lotado, sem que ninguém facilite sua passagem. Como elas, os demais do rebanho se deixam levar pelos que empurram atrás, e não resistem à criada necessidade de se condicionar a um mundo que mais parece inferno.

Se chove em horário de pico, os ônibus não param. Já estão lotados, como estão as cabeças de quem sai do trabalho ansioso por chegar em casa. Num dia como esse, prefiro ir para casa a pé. Tenho sorte por morar perto do emprego e, como quem adivinha esse meu privilégio, dão-me guarda-chuvadas, quando tento transpor um dos pontos abarrotados de pessoas.

São gente com pele áspera a grandes distâncias de trânsito e cansaço de viagens na condução a pé. Mudam de cor, como a avenida Paulista sob as luzes de Natal. Riem da piada do cobrador, reclamam do tempo e da política e choram ou passam mal em meio à multidão, num dia de fragilidade. Mas, seguem engrossando o revestimento do corpo para se camuflar em meio a desgraças injustas. Sou parte da bicharada.


CARACOL

Ainda não entendia os porquês, embora os por ques não saíssem das frases confusas que ele ainda não sabia pronunciar. Já deveria saber que a bola colorida que lançou no quintal era de quebrar? Por que, então, deviam todo o tempo com ele ralhar?

Queria que nada se fizesse em cacos e tampouco seu corpo se pintasse com manchas rochas e arranhões quando despencasse das escadas, tentando voar. Mas, aos poucos, aprenderia que as coisas se quebram e são frágeis, talvez porque feitas de material duro, não da borracha macia e resistente do mordedor contra os dentes despontando na gengiva vermelha.

Mas, se até os balões, tão fofinhos, estouravam...Será que um dia também o colo molenga da mãe ia se desfazer? E haveria algum mal nisso de se perderem as coisas? Se nem sabia de onde tudo o que amava tinha surgido, como poderia imaginar para onde aquelas coisas iriam depois de acabadas? Ou elas simplesmente somem, sem nada ser colocado em seu lugar?

Certa vez, rasgara um urso de papel que saía de um livro de histórias, em alto-relevo. Viu quando a mãe levou os pedaços do desenho para algum lugar e depois voltou com o urso de novo inteiro. Era então ela quem tudo refazia? Lembrou-se que foi também aquela mulher de cabelo longo e perfumado que havia acalmado a dor do ralado feito no ato corajoso de escalar paredes. As mães deveriam ser como os super-heróis dos quadrinhos, pensou.

Mas, depois, recordou que a mãe do João tinha adoecido. Todos diziam na escola que ela ia morrer. Mas, então, até os seres fantásticos se quebram...Quando fez em pedaços o enfeite de cristal redondo e colorido que ficava na sala, foi a mãe que o estilhaçou um pouco, com chinelo em punho e olhar furioso.

As mães se quebram e também sabem quebrar, assim como ele. Gostava de esmagar formigas com o pé pequeno e não tinha pena quando um gato fugia por ele amedrontado. Só havia se sentido menor que os bichos do quintal quando, certo dia, bateu com um galhinho seco na cabeça de um caramujo, fazendo com que o bicho desaparecesse. O ser mole só tinha se escondido da ameaça dentro da concha, mas ele ainda não conhecia essas espertezas, e pensou que havia cortado a cabeça do caramujo.

-Era tão bonito...tinha antenas! Não queria ter arrancado a cabeça dele- disse à mãe, enquanto essa ria e esperava o bicho sair da toca para mostrar ao filho que ele não havia matado ninguém. O menino acabou rindo também, mas tinha um sorriso hesitante, entre janelas. Descobrira que até as coisas moles e espertas precisavam de duras carcaças para sobreviver.

-Mas, o que é duro quebra...- falou à mãe. Ela, sem dar importância, disse que as coisas só quebram se a gente não cuida delas. Com as mãos em concha, soprou para dentro do ouvido da criança um som engraçado, que a fez gargalhar. O garoto ficou mole como um caramujo e, ainda hoje, tenta achar suas antenas.