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PINTA DE MENINA

Olhos com moldura acrílica primeiro e, depois, aros naturais formados pela sombra de um olhar cansado, chamados de olheiras. Com a retirada dos óculos, as feições pareciam mais livres, embora expostas à constatação do cansaço nelas retratado.

O retângulo do espelho contrastava com o círculo do rosto arredondado, assim como esse fizera antes com as lentes retangulares dos óculos. Sem eles, a face parecia infantil, mas era só colocar novamente sobre os olhos ingênuos aquele par de retângulos para que o ser refletido se transformasse numa pessoa quadrada, do formato que devem ter as responsabilidades.

Óculos lembram máscaras. Sem eles, era tão diferente: as lentes não cobriam mais o ossinho do nariz empinado e curioso e o aro azulado já não impedia a visão de uma pinta saliente salpicada no lado esquerdo do rosto, logo abaixo do declive que separa os olhos das bochechas.

Pintinha esquisita aquela! Vermelha, de longe, parecia uma espinha, mas, de perto, era como uma pequena bolha de sangue, capaz de estourar, vertendo líquido ao mínimo toque de agulha. Aquele pontinho era vibrante e parecia feito da mesma carne que preenchia o resto do corpo, diferente das pintas negras, tão semelhantes a marcas feitas com lápis de maquiagem. Desse mesmo modo, também sugerem ser acessórios, e não parte do corpo, as unhas, os cabelos...

Os fios vistos agora eram compridos e despencavam em cachos. Sua dona não parecia crer na ideia de que os cabelos são detalhes apensados aos seres. Não cortava a juba havia meses, como se houvesse sentido dor nas vezes em que a mãe a fizera deixar as madeixas curtas, a contragosto. Mas, agora era uma mulher. Quando sorria, até podia ver nos cantos do olhar alguns pequenos riscos, anunciando marcas de maturidade.

E conseguia transmitir seriedade usando óculos. Nos momentos em que se mostrava assim, sem sorrir, reprimindo a boca rosada e cheia de dentes grandes e desinibidos, parecia mesmo decidida. Quem olhasse a julgaria com coragem para cortar em vários dedos o cabelo e tirar do corpo todas as várias pintas que possuía, como o médico lhe havia recomendado.

Mas, na pinta vermelha ela não queria mexer. E isso não porque a pequena bola avermelhada fosse menos ameaçadora que as outras, segundo o olhar do doutor. Mas sim, porque era a mais perigosa do ponto de vista de sua dona. Ela faria questão de manter a manchinha vermelha ali, para que, quando estivesse só e sem necessidade de máscaras, pudesse se ver cheia de algo sangrento e pulsante, antes contido por retas geométricas.

CONVENÇÃO

A vida está debaixo do tapete,
e na boca de gravatas ambulantes
que enforcam quem não as usa
e anunciam metas de desaceleração
do fim aceito,
do sofrimento
da poeira escondida pelo capacho.

A vida não quis ter pé limpos sobre sua cabeça.
E quem quis?
Antes de respirar, ela elegeu gravatas
e se escondeu pra não sujar a sala.

E se empoleirou em pirâmides humanas
cambaleantes...
E no alto de árvores castigadas,
pelo tempo acelerado por um relógio de ouro,
que espreme os pulsos de quem não o usa.

A vida encolheu,
acreditou que era menor,
primitiva, errante e desorganizada,
mas existe porque não sabe ser diferente.

A viver,
veio a ver,
que não soube ser usada e,
de pronto, foi condenada
a inalar fumaça.

Não há por que temer.
A gravata conversou com o relógio,
ajustou as turbinas e ponteiros
para matar tudo mais devagar.

A vida não sabe espreguiçar.
Ela pula de janelas e viadutos,
tira-se do mundo quando quer.

E ri de objetos antropomórficos que,
carrancudos e de ombreiras,
dão de ombros ao que é.


FAXINA

Enquanto torcia o pano,
era a alma que se retorcia.

Vassoura em punho,
pensava em se varrer com a poeira.

O sol a pino, a pia no sabão,
O piar dos pingos com espuma
eram piano a tocar choro.

E essa canção ela bem conhecia,
e cantava por dentro,
limpando um tédio escuro,
Preto como sua mão e o céu
na hora de ir embora.

Não queria alvejante
pra cor negra que causava, limpa.
Embora branqueasse roupas e piso,
pisada na autoestima.

Precisava sim da luz sem manchas
do sol de domingo.
A cozinha suja de feijão,
a cerveja gelada,
as unhas de novo pintadas,
E o esfregão do peito de Zé,
na roda de samba,
a lhe roçar, lavada.