BALDEAÇÃO
apertou os parafusos da articulação cansada,
poliu a carcaça à prova de coices metálica,
e caminhou rumo ao buraco que, de novo, levaria
ao mundo debaixo.
E então, frente aos trilhos,
esperando o já sabido,
encaixou sua peça na engrenagem,
preparado-se para a viagem.
Mas, o dia seria diferente,
o vagão não veio, e a massa impaciente
cresceu, vazando pelas grades da coxia.
A voz do além pedia paciência,
e prometia solução com urgência.
Enquanto, sem saber o que ocorria,
ele bateu automática continência.
Policiais se aproximaram
quando alguns desajustados perdiam a calma,
E a voz ainda a ecoar pelos túneis sufocantes,
agradecia pela compreensão dos viajantes.
Problemas técnicos com causa desconhecida.
ou causados por algum militante suicida?
Sabotagem de político, ou alguma ação distraída?
Ele não procurava resposta,
nem sabia perguntar,
só queria que lhe deixassem chegar a algum lugar.
E, se não podia ir ao trabalho, o que mais faria?
Caminhando pela Sé, sentiu-se sufocar
pelo ar da quebra da rotina.
A desorganização das ruas subiu, cobras,
amarrando-lhe as pernas, sem deixar que corresse.
O entorno tomado de gente sem rumo,
Era entornado sobre os interiores com selvageria.
Ele também agora via o metal do seu corpo escorrer
deixando aparecer uma pele desbotada,
mas cheia de veias, por onde circulavam
raiva e dor coaguladas.
O trânsito, o relógio e as pessoas parados,
E só o sangue pulsava,
com pressa de tirar o atraso.
A inquietação vinha acompanhada
de um medo libertador,
indignação corajosa,
só experimentada pelos loucos.
Um receio de, na ausência de ter aonde ir,
Não se saber mais voltar quando esse lugar existir.
Interrompido o transe, eis que vem a resposta pra dúvida geral,
Um botão de emergência apertado tinha sido a razão do caos.
Uma alavanca tem capacidade para parar a humanidade.
E basta um só gesto pra derrubar toda a mecanicidade.
Porém, as verdades despencam com fios
em curto circuito,
até gambiarras objetivamente humanas
religarem a virtualidade dos fatos.
No dia seguinte, ele não acordou,
apertou os parafusos da articulação cansada,
poliu a carcaça à prova de coices metálica,
e caminhou rumo ao buraco que, de novo, levaria
ao mundo debaixo.
A massa havia diminuído,
os olhos vitrificados fitavam o vazio.
A condução, agora, vinha,
E ele com um alívio insosso,
deixou-se cair sobre a linha.
HOJE TEM MARMELADA
Uma das minhas maiores diversões, quando criança, era ir ao circo. Gostava de ver o domador se arriscar frente aos leões e apreciava a angústia da torcida para que o atleta esguio, com um macacão colado ao corpo, não despencasse do trapézio.
Assustava-me, porém, o globo da morte. Aquilo era perigo demais. Lembro bem que o barulho provocado pelo contato das rodas das motocicletas com as grades da esfera gigante me causava mais irritação do que adrenalina. As atrações favoritas eram mesmo o mágico com toda aquela habilidade para tirar encantamento de um simples baralho, e o homem com roupa estampada de estrelas, que se equilibrava sobre a corda bamba.
Num picadeiro tão cheio de pessoas dispostas ao risco, dois dos artistas faziam pouca diferença no meu imaginário infantil. Afinal, tudo o que eles tinham para oferecer era um nariz vermelho, sapatos grandes e pontiagudos, olhos que esguichavam lágrimas de mentira e um largo sorriso, que não se sabia se era natural ou ilusão feita de maquiagem.
Já faz tempo que não me permito ir para debaixo de uma lona colorida como aquela, onde as pessoas dividem o olhar entre as performances do centro da arena e o cachorro-quente. Da palavra que dá nome a esse lugar feito de uma arte pitoresca só restou seu uso como parte de uma expressão, com a qual os adultos dão nome à política sustentada em demagogia: “pão e circo”.
Por falar nisso, às vésperas das atuais votações presidenciais, decido adiantar a passagem do tempo de um sábado monótono, almoçando frente à TV. O horário eleitoral traz desde o cantor mal-sucedido que tenta se pendurar num cabide de emprego, até a mulher com nome de fruta que balança os quadris feitos de geleia. O show tem também uma mulher barbada, que conquista espectadores ostentando pelos postiços que emprestou de um certo companheiro. Em seguida, um senhor baixinho de bigode farto, a quem só falta o chicote, promete derrotar o leão da receita, enquanto jogadores de futebol fazem embaixadinha com uma bola murcha de ideias.
Já o outrora esperado ilusionista agora virou carta marcada. São vários os senhores de terno que fazem bem o truque da moeda invisível. Eles até deixam o povo tocar o níquel para ver se é real, antes de dar sumiço ao objeto num passe de mágica. Os contorcionistas da esquerda, por sua vez, espremem-se dentro de caixas, cuja chave eles próprios perderam. E os políticos equilibristas continuam ídolos na arte de se manter na linha, mas desistem do próximo passo, se não estão suspensos por cabos de aço.
Eis que surge, então, dando a volta por cima, o esquecido e humilde palhaço. Com nome de erva daninha, ele não precisa de esforço para arrancar risos porque sua presença é, em si, a piada. O humor negro da figura sem-graça não supera sua tragicômica ascensão na preferência do eleitorado. “Pior que tá não fica”. Será que as pessoas acreditam mesmo nisso, ou também querem uma ponta como comediante, para tirar sarro dos candidatos que, por trás da pose séria, fazem zombaria? Pode ser ainda que, por algum motivo, tenham se identificado com o humorista. Ou, tentem pela primeira vez eleger o bobo da corte, para se livrar do encargo.
Com o fim da zorra gratuita, continua o noticiário abarrotado de denúncias repentinas e casos de corrupção, que são lançados para chamar a atenção, como malabares ao ar. A diferença é que as informações jogadas assim ao alto, quando puxadas pela gravidade da falta de fundamentos, não trazem a leveza das bolinhas coloridas que impressionam a vista sob as mãos ágeis do artista, mas sim, o peso e o ruído estridente do globo da morte.