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ESPELHO DA BARRA

Hoje tenho uma pressa,
que não a do ponteiro que tudo pontua.
Mas, de pontes que me levem a barras
de onde eu possa me ver sem barragens.

Já não quero metaforizar o entorno
que se entorna sobre mim como lama.
Todas as palavras de todo o mundo hoje estão sem significado.

Eu que tanto fiz e faço uso das letras,
Agora me sinto por elas usada.
Não posso expressar o que me ultrapassa.
Meu espelho é sem moldura e sou moldada.

Mas, não sinto ser eu no reflexo,
Sou refletida por olhos estelares que me cercam.

Não existo, embora viva todo o tempo.
Conto com tabuada o dia em que me reconheci.
E devo ser mesmo só parte de uma conta.

Quis fugir para dentro de um conto,
Mas em ilusão real já me encontrava.

Com vocábulos sem sentido,
Hoje desejo não ter fala:

O deserto oasístico da dor,
O silêncio do olhar cúmplice,
O riso verdadeiro e sem som.

Preciso escrever com as marcas de expressão de um velho,
e combinar gestos dos outros para relatar pensamentos que calo.

Porque perdi a fala, ou nela me perdi.
Encontrei sol na solidão e para o que era morri.

Ainda há vida sob frases e vidros espelhados.

BRINCANDO DE COLORIR


O primeiro elemento retirado da caixa era o azul. Com aparência de novo, bem apontado, tinha no corpo a cor brilhante e na ponta o mesmo tom, mas em versão opaca. O outro integrante do grupo, ao lado, com menor estatura, aparentava já ter sido um pouco mais gasto. Sua coloração era vermelha e ele trazia na parte inferior do corpo um pequeno pedaço descascado. Talvez o autor do estrago fosse alguém ansioso, com o hábito de morder enquanto mastiga pensamentos.

O terceiro integrante era o mais bonito, todo lilás. Aquela cor tinha a capacidade de transformar as demais num lindo arco-íris, embora ela própria tivesse que se retirar dele depois, por não pertencer à composição da aquarela natural. Mas, por mais que sua existência viesse da junção do vermelho e do azul, com pitadas de branco, ela tinha personalidade.

Não bastasse sua intrínseca beleza, essa peça do kit tinha sido apontada de modo diferente, como se a lâmina que buscava trazer o grafite à vista, na hora de retirar lascas da madeira, tivesse atuado com a delicadeza de quem trabalha para fazer uma escultura. O quarto integrante, por sua vez, era pequenino, embora não parecesse gasto. Em sua superfície, nenhum arranhão, apenas a cor amarelo ouro, reluzente como a do sol que acaba de nascer.

O próximo integrante, o verde, um pouco mais alto, trazia a ponta quebrada e parecia triste por isso, como se a falta de algo no topo da cabeça fosse motivo para gozações por parte dos outros do grupo. Por fim, via-se ali o branco. Tão pequeno quanto o amarelo, ele, porém, fazia jus à comum relação que se estabelece entre o tamanho do lápis e seu tempo de uso.

Pode ser que sua expressão de velhice e exaustão viesse das marcas grosseiras de golpes feitos a estilete que ele trazia próximas à ponta. Por que não usaram o apontador?- ele se perguntaria, caso escondesse sentimentos sob sua cor pacífica e aparentemente vazia, ainda que capaz de guardar em si os espectros de cada uma das cores primárias. Há crianças que fazem lápis-de-cor de pessoas, criando historinhas para serem interpretadas pelos objetos pontudos de madeira. O tempo passa e, de repente, elas se veem brincando só com uma cor.


OVERDOSE

Fome de açúcar
Sede de amor
Ânsia por sol

Tem falta de mar no metrô,
Nadam no ar sem O2.
Falta aqui o que sobra em algum lugar.

Há sóbrios abstinentes na corrente de dor.

Medo da satisfação.
Saudade do que não foi.
Porre de ilusão.
Ilustres porradas ilustram com borrões
a realidade.

Busca por paz?
Pasmaceira
Enjoo do mal?
Cegueira

Sofrer cortes fora da pele.
Depenar flores que voam
e achar no miolo o pólen vazio,
enquanto as asas já se foram.

Fome de ácido
Sede de terror
Ânsia por chuva

Falta métrica no mar,
Oxigenam o nado sem ar.
Sobra aqui o que falta em algum lugar.

De igual só os sóbrios abstinentes,
agarrados à mesma corrente.