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JUÍZO FINAL

A praça estava vazia. Só ele caminhava frente à catedral. Os vitrais coloridos tinham algo de alegre, atrativo aos olhos, que o convidavam a entrar e descobrir o restante que pudesse haver de belo no interior daquele amontoado harmônico de tijolos.

Mas, conteve-se quando viu que não estava tão sozinho quanto imaginava. Na porta da igreja um mendigo empunhando uma bíblia, aberta numa página rasgada, rezava baixo uma oração que parecia ter aprendido noutro lugar que não o livro em suas mãos.

A voz do homem se tornou mais alta quando ele disse aos quatro ventos que era São João Batista encarnado, e estava ali para trazer ao mundo a palavra de Deus esquecida.

-Mas, que cara louco!- pensou, desviando-se da rota que até então seguia, para buscar uma parte da rua que pudesse ser atravessada, levando a qualquer lugar longe dali. Na esquina mais próxima, encontrou um boteco movimentado e aparentemente leve ao bolso cheio (na falta de outra palavra oposta a “vazio” mais representativa daquele conteúdo) do seguro-desemprego.

Escolheu a mesa mais afastada e fez sinal para o garçom, que embora percebesse o chamado, não mudou a expressão sisuda, nem se apressou em ser solícito, demorando alguns segundos para se aproximar com um cardápio molhado de cerveja.

- Quero a bebida mais forte e barata que tiver!- O garçom entortou um pouco mais a boca, já retorcida como se fosse problema de nascença, e sem dizer palavra, virou as costas e se dirigiu ao balcão onde um homem velho cantava um bolero, irritando o careca do outro lado, que pedia silêncio, enquanto apontava um relógio na parede amarelada.

Como a cena era instigante, fazendo quem a percebesse continuar reparando para saber onde ía parar aquela discussão, esqueceu-se por alguns instantes de tentar imaginar se o garçom mal-humorado voltaria com alguma sugestão de bebida. Foi então que o homem ranzinza o chamou de volta aos pensamentos sobre a própria vida, batendo com rispidez, contra a mesa, um copo de vidro, que serviu, até quase transbordar, de um líquido vermelho.

Quando ía perguntar que diabos era aquilo, o garçom depositou sobre a mesa, com a costumeira delicadeza, uma garrafa, trazendo um rótulo onde se podia ler, em letras coloridas, INFERNO. Um arrepio lhe percorreu todo o corpo desde o fim da espinha até o pescoço. E, antes que pudesse esboçar uma interjeição, o sujeito mal-educado deu, mais uma vez, as costas e partiu na direção de outro cliente.

Pensou em se levantar e ir para outro lugar onde fosse melhor tratado, e pudesse beber qualquer coisa com um nome um pouco mais simpático, ainda que centavos mais cara. Mas, seus olhos pareciam encantados pela cor sangrenta do copo cheio, contrastando com as outras cores da garrafa rotulada em tons combinados com um mau-gosto divertido, quase infantil.

Foi aproveitando esse lapso de nenhuma autocrítica, que deu o primeiro gole. O bolero do ancião ía aumentando e se tornando mais desafinado, à medida que crescia sua vontade de beber um pouco mais. Decidiu, então, virar o copo. Assim fez, quando, de repente e sem controle, chegou-lhe aos ouvidos a voz do mendigo da igreja misturada à cantoria do velho bêbado. Já ía se servindo outra dose, quando o som de um carro buzinando, o riso alto de uma coroa, recostada a uma das paredes do bar, e a conversa sem sentido de um grupo de adolescentes, na mesa ao lado, também se mesclaram à oração do maltrapilho.

-Tudo é tão harmônico. Parece até que estou apreciando uma sinfonia- disse a si mesmo, bailando em volta das cadeiras do bar, sem se levantar de onde estava. Imberbe no devaneio, não se surpreendeu quando outro mendigo, tocando uma gaita, aproximou-se e pediu assento ao seu lado.

-Fique à vontade. O senhor é São João Batista encarnado?

-O que foi que o doutor bebeu?- perguntou o outro entre gargalhadas.

-É isso aqui- IN-FER-NO, pronunciava com a boca mole e a expressão de um relaxamento angustiado.

- Virgem santa- riu de novo- Eu tomo essa todos os dias, mas não é pra qualquer um não...o doutor devia ir com calma.

Ele então piscou os olhos com força e viu o rosto do mendigo e a figura da garrafa perderem o contorno, tornando-se uma coisa só.

- Se existir mesmo céu, a vida lá deve ser bem sem graça, não é não? Esse negócio aqui- apontava a garrafa- tá sendo pra mim uma revelação. Deve ser melhor que o aiu, ais, asca, aiuasca, ou sei lá como é que se fala ou escreve isso. Aquela bebida santa que agora tá na moda...

O mendigo pareceu se entediar com o papo e voltou a tirar qualquer som da gaita. Os ouvidos dele íam se tornando cada vez mais potentes e satisfeitos com a algazarra sonora ao redor, quando o garçom grosseiro veio com rapidez, na intenção de expulsar o artista andarilho pra longe.

Já aproveitou, e trouxe, também, a conta e dois olhos vermelhos de sono e raiva.

- Cinquenta!

- Oi?

- A conta deu cinquenta. Desembolsa logo, que a gente já vai fechar.

-Mas, eu pedi a bebida mais barata!

- A dose é um real...e, o senhor secou a garrafa, não tá vendo?

Quando olhou na direção apontada pelo garçom, o que viu era uma catedral em miniatura rodeada de uma faixa onde se liam, com as letras e cores do antigo rótulo, O REFIM. No lugar do mendigo, agora estava ele mesmo, tocando uma interminável canção, que, como disco riscado, recomeçava antes de acabar.

CROMOSSOMOS

Meu genótipo não é do tipo gênio,
nem faz tipo.
Apenas é gene do que tipografo.

O fenótipo, então...
feno que masco, atípico, de um mundo em vão,
são condutas tipificadas na lei do acaso.

Sou reunião do que germino e fecundo,
fenícia dos mares da fé no tipo de gênese
que, de mim, desconheço.

Apenas remoo e desço até o nó
dos ge e fe tiches de pó
que reúno pra justificar
minha não genuína e fenomenal
dificuldade de lidar com o mal.

Genoma não mapeado,
Sou mapa de rios que me fazem margem.
Enquanto derreto, do que sou, cromada.

Soma de cruzamentos,
que não fazem cruzada
às fenotípicas encruzilhadas,
Quero ser, cromossou...

Parte fenômeno genético,
meio genômeno fenético,
e doses de criação fonética,
no frenético correr da existência.